30 de setembro de 2013

NA PAZ

|30 DE SETEMBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

ELES ME DIZEM que H. está feliz agora. Dizem que ela está em paz. O que os faz ter tanta certeza disso? Não estou querendo dizer que temo o pior de tudo. Suas quase últimas palavras foram: "Estou em paz com Deus". Ela nem sempre esteve, e nunca mentia. E também não se enganava facilmente, muito menos em seu próprio favor. Não é isso que estou querendo dizer. Porém, por que ele estão certos de que toda a agonia termina com a morte? Mais da metade do mundo cristão e milhões de pessoas no leste pensam diferente. Como eles sabem que ela entrou para o "descanso"? Por que a separação (se nada mais), que traz tanta agonia ao amante que foi deixado para trás, deveria não envolver dor para o amante que partiu?
"Porque ele está nas mãos de Deus". Mas, se for assim, ela estava nas mãos de Deus o tempo todo e eu vi o que elas fizeram por ela por aqui. Será que elas se tornam de uma hora para outra mais gentis conosco assim que saímos do nosso corpo? E, se assim for, por quê? Se a bondade de Deus consente em nos ferir, então, Deus não é bom, ou não há Deus; pois na única vida que conhecemos ele nos fere além dos nossos piores medos e além de tudo o que somos capazes de imaginar. Se há consentimento em nos ferir, então ele pode muito bem nos ferir depois da morte de maneira tão duradoura quanto antes.
Às vezes é difícil não dizer: "Deus, perdoe a Deus". Outras vezes é difícil dizer isso. Mas se a nossa fé é verdadeira, ele não o fez. Ele se crucificou.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

29 de setembro de 2013

ONDE ESTÁ DEUS?

|29 DE SETEMBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

E PARA onde foi Deus nesse meio tempo? Esse é um dos sintomas mais inquietantes [do luto]. Quando você está feliz, tão feliz que não sente que precisa de Deus, tão feliz que cai na tentação de achar que suas exigências são uma interrupção, se você se lembrar e se voltar para Deus com gratidão e louvor, você será - ou pelo menos essa será a sensação - recebido com boa-vindas e de braços abertos. Mas vá procurá-lo quando a sua necessidade é desesperadora, quando qualquer outro tipo de ajuda é vã; o que você encontrará? Uma porta batida na sua cara e o barulho de uma chave virando duas vezes para trancá-la. E depois disso, silêncio. Você poderia muito bem ir embora. Quanto mais você esperar, mais enfático se tornará o silêncio. Não há luzes nas janelas. Pode ser que se trate de uma casa vazia. Será que ela já foi habitada algum dia? Houve tempos em que ela bem que parecia habitada. E aquela percepção foi tão forte quanto esta. O que pode significar isso tudo? Por que ele é um comandante tão presente em nossos tempos de prosperidade e uma ajuda tão ausente em tempos de conflito?
Eu tentei expor alguns desses pensamento para C. esta tarde. Ele me lembrou que a mesma coisa parece ter acontecido com Cristo: "Por que me desamparaste?". Eu sei. Mas será que isso ajuda a entender o que está acontecendo?
Não que eu esteja (penso) correndo o risco de parar de acreditar em Deus. O verdadeiro perigo é chegar a acreditar em coisas tão horríveis sobre ele. A conclusão que eu temo não é que "Deus não existe", mas que "é assim que ele realmente é. Não se iluda mais". 

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

28 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [28.09.2013]


0 - Eu Estou Aqui

FANTASIA E VIRTUDES

|28 DE SETEMBRO|

Screwtape oferece uma ilustração muito útil

IMAGINE o seu paciente como uma série de círculos concêntricos na qual a vontade ocupa o centro, vindo em seguida o intelecto e, finalmente, a fantasia. Dificilmente você conseguirá excluir de todos esses círculos tudo o que está relacionado à presença do Inimigo [Deus]: mas você terá que continuar compelindo todas as virtudes para fora até que elas finalmente estejam no círculo da fantasia, e todas as qualidades desejáveis no círculo da vontade. As virtudes só se tornarão fatais para nós quando elas alcançarem a vontade e forem transformadas em hábitos. (Não me refiro, é lógico, ao que o paciente suponha erroneamente ser a sua vontade, essas sombras e esboços conscientes de resoluções e ameaças, mas ao centro real da personalidade, que o Inimigo [Deus] chama coração). Todos os tipos de virtude inseridas na fantasia ou aprovadas pelo intelecto ou mesmo, em certa medida, amadas e admiradas, não afastarão um ser humano da casa do Nosso Pai [diabo]: na verdade, tais virtudes podem até tornar o nosso paciente mais divertido quando chegar lá.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

27 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [27.09.2013]


1 - 5:50 AM

SIGA-ME

|27 DE SETEMBRO|

EXISTEM certas questões que os cristãos discutem que acho que nunca foram respondidas. Há outras para as quais é possível que eu jamais encontre resposta. Se eu as tivesse perguntado, mesmo em um mundo melhor, quem sabe (até onde eu sei) eu tivesse recebido a mesma resposta que recebeu um inquiridor muito maior do que eu: "Siga-me".


[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

26 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [26.09.2013]


2 - ROCK DA VOVÓ
 

DEUS NO TANDEM*

|26 DE SETEMBRO|

Tandem

PARECE que a Bíblia realmente dá um basta nesse assunto quando coloca as duas coisas juntas numa única e impressionante sentença [Assim, meus amados, como sempre vocês obedeceram, não apenas em minha presença, porém muito mais agora na minha ausência, ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor, pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele. (Fp 2.12-13)]. A primeira metade diz: "Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor", o que faz com que tudo pareça depender só de nós e das nossas boas ações. Porém, a segunda parte diz: "Pois Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar", o que faz parecer que Deus faz tudo e nós, nada. Temos que essa seja o tipo de coisas com que nos deparamos no cristianismo. Fico intrigado, mas nada surpreso. Agora veja, estamos tentando entender e separar em compartimentos o que Deus faz e o que o homem faz quando, na verdade, ambos agem em conjunto. Então começamos a pensar que é como dois homens trabalhando juntos, de modo que possamos dizer: "Ele fez esse tanto e eu, aquele outro". Mas esse raciocínio é errado. Deus não é assim. Ele está ao mesmo tempo dentro e fora de você: mesmo se fôssemos capazes entender quem fez o quê, não acredito que a linguagem humana seria capaz de expressar isso adequadamente. Na tentativa de expressá-lo, diferentes igrejas dizem coisas diferentes. Você acabará notando que mesmo os que insistem com toda a veemência na importância das coas ações admitem que você precisa de fé; e que aqueles que insistem mais fortemente na fé mandam você praticar boas ações.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

25 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [25.09.2013]


3 - TERCEIRO DIA 

FÉ OU OBRAS

|25 DE SETEMBRO|

OS CRISTÃOS já discutiram demais se o que leva o homem de volta ao lar são as boas obras ou a fé em Cristo. Na verdade, eu não tenho o direito de tocar em uma questão tão difícil, mas, ao que me parece, isso é o mesmo que perguntar qual das lâminas de uma tesoura é mais necessária. Um esforço moral sério é a única coisa capaz de levá-lo ao ponto em que você desiste. A fé em Cristo é a única coisa que pode lhe salvar do desespero nesse ponto; e as boas ações inevitavelmente emergirão dessa fé nele. Há duas paródias da verdade em que diferentes grupos de cristãos nos passado foram acusados por outros cristãos de acreditar; quem sabe elas tornem a verdade mais clara. Um grupo foi acusado de afirmar: "As boas ações são tudo o que importa. A melhor boa ação é a caridade. A melhor forma de fazer caridade é doar dinheiro. O melhor lugar para se doar dinheiro é na igreja. Então, vá passando a bagatela de 10 mil libras que daremos um jeito no seu caso". A resposta a esse absurdo é que qualquer boa ação realizada por esse motivo, baseada na ideia de que o céu possa ser comprado, não seria uma boa ação, e sim uma especulação comercial. O outro grupo é acusado de defender: "A fé é tudo que importa. Consequentemente, se você tem fé, não importa o que faça. Peque à vontade, meu chapa, e divirta-se; Cristo dará um jeito para que isso não faça diferença no final". A resposta a esse absurdo é que, se o que você chama de "fé" em Cristo não envolve dar a mínima atenção ao que ele diz, então não se trata de fé alguma - não seria fé ou confiança nele, mas somente aceitação intelectual de alguma teoria sobre Cristo.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

24 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [24.09.2013]

4 - Papo de Lóki
 

O PRIMEIRO VISLUMBRE DO REINO DOS CÉUS

|24 DE SETEMBRO|

TENHO plena consciência de que a expressão "entregar tudo a Deus" pode ser mal interpretada, mas ela deve ficar assim por enquanto. O sentido no qual um cristão entrega tudo a Deus é o de que ele coloca toda a sua confiança em Cristo, certo de que, de alguma forma, Cristo irá compartilhar com ele a perfeita obediência humana que ele cumpriu desde o seu nascimento até a sua crucificação; que Cristo o tornará mais parecido com ele e que, de certa forma, tornará as suas deficiências boas. Na linguagem cristã, ele há de compartilhar a sua "condição de Filho" conosco, tornado-nos, como ele mesmo, "Filhos de Deus". [...] Em outras palavras, Cristo oferece alguma coisa por nada; ele até oferece tudo por nada. Em certo sentido, toda a vida cristã consiste em aceitar essa notável oferta. Porém, a dificuldade está em alcançar o ponto de reconhecer que tudo o que fizermos e que podemos fazer não é nada. O que nós mais queríamos era que Deus contasse nossos pontos positivos e ignorasse os negativos. Novamente, em certo sentido, você poderia dizer que nenhuma tentação é superada até que deixemos de tentar superá-la - jogando a toalha. Porém, então você não conseguirá "parar de tentar" da maneira certa e pela razão certa até que tenha tentado o máximo possível. Ainda, em outro sentido, entregar tudo a Deus não quer dizer, é claro, que você deve parar de tentar. Confiar nele significa tentar fazer tudo o que ele diz. Não faria sentido algum dizer que você confia em uma pessoa cujos conselhos você rejeita. Assim, se você realmente se entregou a Cristo, deduz-se que você está tentando ser obediente a ele - mas de uma nova maneira, menos desesperada. Então, você para de tentar fazer coisas para ser salvo, porque ele já começou a lhe salvar. Deixa de esperar o céu como recompensa por suas ações e inevitavelmente passa a querer agir da forma certa, porque o primeiro vislumbre do reino dos céus já está dentro de você.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

23 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [23.09.2013]

Aquecimento para o show do Resgate
Contagem regressiva:
5 - Depois de Tudo



ENTREGANDO TUDO A DEUS

|23 DE SETEMBRO|

NÃO temos como descobrir que somos falhos em manter a lei de Deus, a não ser que tentemos com todos os nossos esforços (para depois falhar). Se não tentarmos realmente, não importa o que digamos, sempre teremos em nosso inconsciente a ideia de que, se tentarmos com mais força da próxima vez, talvez sucederemos em nos tornar perfeitamente bons. Assim, nesse sentido, a estrada de volta para Deus é a do empenho moral, de tentativas cada vez mais duras. Porém, em outro sentido, não são as nossas tentativas que nos levarão de volta para casa. Todas essas tentativas só podem nos levar àquele ponto vital em que você se volta para Deus e confessa: "Eu não sou capaz de fazer isso. Você precisa fazê-lo por mim". Mas eu lhe imploro, não comece a se perguntar: "Será que eu já atingi esse ponto?". Não fique sentado observando a sua própria mente para ver se está acontecendo.  Isso coloca a pessoa em um barco furado. Quando as coisas mais importantes da nossa vida acontecem, geralmente não sabemos, no momento, o que está acontecendo. Uma pessoa nem sempre é capaz de dizer a si mesma: "Vejam! Eu estou crescendo". Muitas vezes é só quando ela olha para trás que se dá conta do que aconteceu e identifica o que as pessoas chamam de "crescimento". Você pode observar isso até nas coisas mais simples. É bem provável que uma pessoa que fica ansiosamente se vigiando para ver se vai conseguir dormir permaneça bem acordada. É claro que essa coisa a que estou me referindo agora pode não acontecer a todos de forma repentina - como aconteceu com o apóstolo Paulo ou Bunyan; ela pode se dar de forma tão gradativa, que será impossível a qualquer um apontar uma hora ou mesmo um ano específico. O que importa é a natureza da mudança, e não como nos sentimos enquanto ela se processa. Trata-se da mudança do estado de confiança em nossos próprios esforços para aquele estado em que já desistimos de tentar fazer as coisas por nós mesmos, entregando-as completamente a Deus.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

22 de setembro de 2013

COMO OS RAIOS DE UMA RODA

|22 DE SETEMBRO|

NÃO SÃO bem as nossas ações que preocupam Deus. O que o preocupa mais é que deveríamos ser criaturas de certo tipo ou qualidade - precisamente aquele tipo de criatura que ele pretendeu que fossemos. Criaturas que se relacionassem com ele de uma determinada maneira. Não digo "que se relacionassem umas com as outras de determinada maneira", porque isso já está implícito; se você estiver bem com ele, inevitavelmente estará bem com todas as criaturas com que se relaciona, da mesma forma que os raios da roda de uma bicicleta, quando encaixados de maneira correta entre o cubo e o aro, estão todos na posição certa em relação aos outros. Enquanto uma pessoa imaginar Deus como um examinador, incumbido da tarefa de aplicar um teste, ou como a contrapartida de uma espécia de barganha - enquanto ela pensar na sua relação com Deus em termos de lucro e reivindicação de lucro -, não estará em uma relação certa com ele. Essa pessoa não terá entendido quem ela é nem quem é Deus. E jamais conseguirá ter uma relação certa enquanto não descobrir a realidade da nossa falência.
Quando eu me refiro a esta "descoberta", quero dizer uma verdadeira descoberta; não algo mecânico. É claro que qualquer criança, desde que tenha recebido alguma educação religiosa, logo aprenderá que não temos nada a oferecer a Deus que já não seja dele e que falhamos até em oferecer isso sem guardarmos algo para nós. A verdadeira descoberta de que estou falando é a de se chegar à conclusão, por meio de uma experiência pessoal, de que essa é a mais pura verdade.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

21 de setembro de 2013

LIÇÃO DA PRÁTICA DAS VIRTUDES CRISTÃS

|21 DE SETEMBRO|

A PRINCIPAL lição que aprendemos com a tentativa séria de praticar as virtudes cristãs é que somos falhos. Se restou alguma ideia de que Deus nos tenha submetido a uma espécie de exame e que precisamos tirar notas boas por méritos próprios, devemos apagá-la. Se restou a ideia de que possa haver algum tipo de barganha - alguma sugestão de que nós estivéssemos em condições de por em prática a nossa parte do trato e, dessa maneira, colocar Deus em dívida conosco, como se não fosse mais do que obrigação dele, por uma simples questão de justiça, fazer a sua parte - ela deve ser igualmente apagada.
Acredito que uma pessoa que tem apenas uma vaga fé em Deus, enquanto não se torna cristã de verdade, tem na mente a ideia de um exame ou de uma barganha. O primeiro fruto do cristianismo verdadeiro é o fim dessa ideia. Alguns, quando percebem que essa ideia foi reduzida a frangalhos, acham que o cristianismo é um erro e desistem. Pessoas assim parecem imaginar que Deus é muito ingênuo. Na verdade, é claro que ele sabe muito bem de tudo isso. Uma das coisas mais importantes que o cristianismo foi designado a fazer foi acabar com essa ideia. Deus estava esperando a hora em que você descobriria que não existe essa história de tirar boa nota para passar no exame ou de colocá-lo em dívida com você.
A outra descoberta costuma ser feita logo em seguida: todas as suas faculdades mentais e emocionais, toda a sua capacidade de pensar ou de mover os membros do seu corpo, tudo isso lhe foi dado por Deus. Mesmo se você devotasse cada segundo da sua vida toda ao serviço dele, não estaria dando nada a Deus que, de certa forma, já não era dele. Vou lhe dizer o que realmente acontece quando dizemos que uma pessoa fez alguma coisa para Deus ou que deu alguma coisa por ele. É como se uma criança fosse até o seu pai dizendo: "Papai, me dá dinheiro para eu comprar um presente de aniversário para você". É claro que o pai faria e se alegraria com o presente do filho. É tudo muito próprio e correto, mas só um idiota pensaria que o pai ganharia algo nessa transação.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

20 de setembro de 2013

NEM TÃO RUIM ASSIM

|20 DE SETEMBRO|

Screwtape apresenta mais técnicas para confundir o paciente

ATÉ AQUI estive traçando minhas reflexões sobre a hipótese de que as pessoas assentadas nos bancos da igreja não dão nenhum motivo racional para o desapontamento. É claro que se elas derem - se o paciente souber que a mulher de chapéu engraçado não passa, na verdade, de um inveterada jogadora de bridge ou que o homem das botas rangentes é o maior pão-duro e chantagista -, então a sua tarefa é bem mais fácil de realizar. Tudo o que você tem de fazer, neste caso, é manter fora da mente de seu paciente a questão: "Se eu, sendo do jeito que sou, posso me considerar de certo modo cristão, que motivo tenho para achar que os diferentes vícios das pessoas do banco ao lado sejam prova de que a sua religião não passa de mera hipocrisia e convenção?". Você talvez me pergunte como seria possível evitar que um pensamento assim tão óbvio ocorresse até mesmo a uma mente humana. Mas é muito possível, Wormwood! Trate bem dele e essa ideia simplesmente não lhe passará pela cabeça. Seu paciente ainda não conviveu o suficiente com o Inimigo [Deus] para já ter desenvolvido alguma humildade real. As coisas que ele diz, até mesmo de joelhos, sobre a sua própria pecaminosidade não passam de tagarelice. No fundo, ele vive na ilusão de que está com saldo positivo na balança do Inimigo [Deus] por ter se deixado converter, e acha que está demonstrando uma grande humildade e condescendência ao ir à igreja com aqueles vizinhos presunçosos. É bom que você o mantenha nesse estado mental o máximo que puder.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

19 de setembro de 2013

TENTAÇÃO REAL

|19 DE SETEMBRO|

COMO você deve se lembrar, eu disse que o primeiro passo rumo à humildade é perceber-se orgulhoso. Gostaria de acrescentar agora que o próximo passo é empreender alguma tentativa séria de praticar virtudes cristãs. Apenas uma semana não basta. Na primeira semana as coisas costumam parecer fáceis. Tente seis semanas seguidas. A essa altura, depois de tiver falhado ou que estiver numa situação pior do que no começo, descobrirá algumas verdades sobre você mesmo. Ninguém tem consciência da sua própria maldade enquanto não se empenhar em ser bom. Há uma ideia tola circulando por aí de que as pessoas bondosas não conhecem o significado da tentação. Isso não passa de uma mentira deslavada. Só os que tentam resistir à tentação de fato conhecem a sua força. Nós mesmos só conseguimos nos dar conta da força do exército alemão lutando contra ele, e não quando nos entregamos. Você só poderá descobrir a força de uma ventania se andar contra ela, não se deitar-se no chão. Uma pessoa que se rende à tentação depois de cinco minutos simplesmente não saberá como se sentiria uma hora mais tarde. Eis a razão por que as pessoas más, em certo sentido, não entendem muito da maldade. Elas vivem uma vida resguardada, sempre se rendendo. Nós jamais descobriremos a força do mal que há dentro de nós enquanto não tentarmos lutar contra ele; e Cristo, pelo fato de ter sido o único homem que nunca se rendeu diante da tentação, é, ao mesmo tempo, o único homem que conhece o real significado de ser tentado - ele é o único realista absoluto.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

18 de setembro de 2013

TREINANDO A FÉ

|18 DE SETEMBRO|


A FÉ, no sentido que estou usando aqui, é a arte de aderir a coisas que a sua razão já aceitou apesar da sua disposição oscilante. As disposições mudarão, não importa a perspectiva que a sua razão possa adotar. Sei disso por experiência. Agora que sou cristão, passo por momentos em que a coisa parece bastante improvável; mas, quando eu era ateu, passava por momentos em que o cristianismo me parecia terrivelmente provável. Essa rebelião da sua disposição contra o seu eu verdadeiro acontecerá de qualquer forma. Eis a razão por que a fé é uma virtude tão necessária: se você não souber impor os limites adequados a sua disposição jamais poderá ser um cristão convicto ou um ateu convicto; será apenas uma criatura que é impelida para lá e para cá, cuja fé depende das condições do tempo e do estado do seu estômago. É por isso que é tão necessário treinar o hábito da fé.
O primeiro passo é reconhecer o fato de que o seus humores mudam. O próximo é ter certeza de que, se você aceitou o cristianismo, algumas das suas principais doutrinas precisam ser deliberadamente mantidas em sua mente por algum tempo, todos os dias. Eis porque as orações diárias, as leituras devocionais e a frequência à igreja são partes necessárias da vida cristã. Temos de ser continuamente lembrados das coisas em que acreditamos. Nem essa, nem qualquer outra crença poderá manter-se automaticamente viva na mente de ninguém. Qualquer crença precisa ser alimentada. E, de fato, se examinarmos numa centena de casos de pessoas que perderam a fé no cristianismo, eu me perguntaria quantas delas se afastaram por terem levado em conta argumentos razoáveis e honestos. Não é verdade que a maioria das pessoas simplesmente se deixa levar, impelidas pelo vento?

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

17 de setembro de 2013

QUANDO OS MUNDOS SE CHOCAM

|17 DE SETEMBRO|

A PALAVRA fé parece assumir dois sentidos para os cristãos. [...] No primeiro, ela significa simplesmente crença - aceitar ou considerar verdadeiras as doutrinas do cristianismo. Isso não tem nada de complicado. Porém, o que intriga as pessoas - ou pelo menos é o que costumava me intrigar - é o fato de que os cristãos se referem à fé, nesse sentido, como uma virtude. Eu costumava me perguntar o que podia haver de virtuoso nisso - o que tem de moral ou amoral em acreditar ou não em certo conjunto de afirmações? Eu costumava dizer que uma pessoa em sã consciência não poderia aceitar ou rejeitar qualquer afirmativa só porque desejava ou não aceitá-la, e sim porque as evidências lhe pareciam boas ou más. [...]
Bem, acho que continuo adepto a essa visão. No entanto, o que eu não conseguia ver na época - e o que muitas pessoas continuam não enxergando - é o seguinte: eu supunha que, uma vez que a mente humana aceita algo como verdadeiro, ela continua acreditando nisso até que surja um bom motivo para reconsiderar tudo. Eu estava supondo que a mente humana é completamente regida pela razão. Mas isso não é verdade. Por exemplo, minha mente está perfeitamente convencida, por boas evidências, de que os anestésicos não me sufocam e que os cirurgiões bem treinados não começam a me operar até que eu esteja totalmente anestesiado. Mas isso não impede que, depois que eles tiverem me posto na mesa, e colocado aquela máscara horrível no meu rosto, eu seja tomado por um pânico infantil. Eu começo a imaginar que posso morrer sufocado e fico com medo de eles começarem a me cortar antes de eu estar preparado. Em outras palavras, eu perco minha fé nos anestésicos. Porém, não é minha razão que está minando minha fé; pelo contrário, minha fé está baseada na razão. São minhas emoções e minha imaginação. A batalha entre fé e razão, de um lado, e emoções e imaginação, do outro.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

16 de setembro de 2013

NÃO SE TRATA SÓ DAS QUEDAS

|16 DE SETEMBRO|

INFELIZMENTE, a temperança é uma daquelas palavras que mudaram de sentido. Hoje ela significa abstinência total do álcool. Porém, nos tempos em que a "temperança" era a segunda das virtudes principais, ela não significava isso. A temperança não se referia especificamente à bebida, mas a todos os prazeres; e ela não significava abstinência, mas a capacidade de não passar dos limites. É um equívoco achar que todos os cristãos devem ser abstêmios; a religião da abstinência é o islamismo, não o cristianismo. É claro que pode até ser dever de algum cristão ou de qualquer cristão em uma época específica abster-se de bebida forte porque ele é do tipo de pessoa que não consegue beber sem passar do limite, ou porque está na companhia de pessoas que tem tendência ao alcoolismo e não deve estimulá-las pelo seu exemplo. Porém, o fato é que ele se abstém, por uma boa razão, de algo que ele não condena e que tem prazer em ver os outros apreciarem. Uma das marcas da pessoa de má índole é que ela não consegue abrir mão de uma coisa sem exigir que o resto do mundo faça o mesmo. Esse não é o estilo cristão. [...]
A restrição moderna da palavra "temperança" à questão da bebida tem causa um grande dano. Ela leva as pessoas a esquecerem  que podem ser igualmente intemperantes com relação a outras coisas. Um homem que transforma o seu futebol ou a sua motocicleta no centro da sua vida, ou uma mulher que devota todos os seus pensamentos a roupas, ou a partidas de bridge, ou ao seu cachorro, está sendo tão intemperante quanto alguém que se embebeda todas as noites. É claro que isso não pode ser tão facilmente observado; a futebolmania ou a bridgemania não fazem ninguém cair no meio da rua. Contudo Deus não se deixa enganar pelas aparências.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

15 de setembro de 2013

SÁBIOS COMO SERPENTES

|15 DE SETEMBRO|

PRUDÊNCIA significa bom senso prático; é se dar ao trabalho de pensa bem sobre o que se está fazendo e qual a provável consequência. Hoje em dia, a maior parte das pessoas dificilmente pensa na prudência como uma "virtude". Na verdade, pelo fato de Cristo ter dito que nós só conseguiremos entrar no seu reino nos tornando como crianças, muitos cristãos alimentam a ideia de que, desde que você seja "bom", não importa que você seja um tolo. Porém, esse é um grande mal-entendido. Em primeiro lugar, a maioria das crianças mostra muita "prudência" quando faz coisas do seu interesse, planejando-as de forma bastante sensata. Em segundo lugar, conforme Paulo enfatiza, quando Cristo diz que devemos ser como crianças, jamais estava se referindo à inteligência; pelo contrário. Ele disse para não sermos apenas "mansos como as pombas", mas "sábios como as serpentes". Ele disse que devemos ter o coração de uma criança, mas a cabeça de um adulto. Ele quer que sejamos simples, focados, carinhosos e ensináveis - assim como as crianças; mas ele quer também que cada parte da inteligência que temos esteja alerta para o trabalho e preparada para a batalha. O fato de você dar dinheiro para uma instituição de caridade não significa que você não deva tentar descobrir se ela é fraudulenta ou não. O fato de você pensar em Deus (por exemplo, quando está orando) não quer dizer que você deva continuar alimentado as mesmas ideias de bebê que alimentava aos cinco anos de idade. É claro que é verdade que Deus não o amaria menos nem o usaria menos se você tivesse nascido com um cérebro limitado. Ele tem um lugar reservado até para pessoas com pouco discernimento, mas ele quer que cada um de nós use o discernimento que tivermos.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

14 de setembro de 2013

É BONDADE MESMO?

|14 DE SETEMBRO|

POR aproximadamente cem anos, nós nos concentramos tanto em uma das virtudes -"bondade" ou misericórdia - que muitos de nós achamos que só precisamos da bondade para sermos realmente bons e da crueldade para sermos realmente maus. Esses desequilíbrios éticos não são incomuns, e outras eras também tiveram as suas virtudes de estimação e suas estranhas insensibilidades. Se uma virtude deve ser cultivada em detrimento de todas as outras, não há nenhuma com reivindicações superiores às da misericórdia - pois todo cristão deve rejeitar aquela propaganda enganosa a favor da crueldade, que tenta eliminar a misericórdia do mundo chamando-a de "bondade" é uma qualidade fatalmente fácil de atribuir a nós mesmos, e de formas bastante inadequadas. Todo mundo se sente benevolente se não houver nada com que se aborrecer no momento. Assim, o homem facilmente se consola por todos os outros vícios, movido pela convicção de que "o seu coração está no lugar certo" e de que ele "não faria mal sequer a uma mosca", enquanto na verdade ele nunca fez o menor sacrifício em favor de alguma criatura companheira. Nós nos achamos bondosos quando na verdade somos apenas felizes; da mesma forma, não é assim tão fácil nos imaginarmos moderados, castos ou humildes.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

13 de setembro de 2013

SOBRE O DAR

|12 DE SETEMBRO|

NA PASSAGEM em que o Novo Testamento fala que todos devemos trabalhar, ele menciona que um dos motivos para tanto é que "se tenha algo para dar aos necessitados". A caridade - dar aos pobres - é uma parte essencial da moralidade cristã. Na assustadora parábola das ovelhas e dos bodes, esse parece ser o ponto culminante. Certas pessoas dizem que a caridade deveria ser desnecessária e que em vez de dar ao pobres, deveríamos lutar por uma sociedade em que não houvesse pobres para quem dar as coisas. Elas podem até estar certas em dizer que precisamos lutar por uma sociedade assim. Porém, se uma pessoa acha que nesse meio tempo ela pode parar de dar, então ela se afastou e está bem longe da moralidade cristã. Não acredito que seja possível estabelecer o que devemos dar em termos quantitativos. Temo que a única regra segura seja dar mais do que sobra. Em outras palavras, se a nossa despesa com conforto, luxo e diversão é maior do que o padrão comum entre os que ganham o mesmo que nós, provavelmente estamos dando muito pouco. Se as nossas doações não estão nos causando aperto ou embaraço, devo dizer que elas são demasiado pequenas. Deve haver coisas que gostamos de fazer, mas que não podemos por causa da nossa despesa com caridade. Estou me referindo agora à "caridade" no sentido comum. Casos particulares de necessidades e aflições vividas pelos seus próprios parentes, amigos, vizinhos ou empregados, que Deus, por assim dizer, nos força a notar, podem exigir mais ainda: podem até mesmo debilitar ou por em risco nossa própria posição. Para muitos de nós o grande obstáculo à caridade não está nos luxos da vida ou no desejo por mais dinheiro, mas no medo - medo da insegurança. Precisamos reconhecê-lo muitas vezes como uma tentação. Diversas vezes é o nosso orgulho que impede a nossa caridade; somos tentados a gastar mais do que deveríamos nas formas exibicionistas de caridade (dar gorjeta, exceder na hospitalidade), e menos do que deveríamos com aquelas pessoas que realmente precisam da nossa ajuda.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

12 de setembro de 2013

SEM SENTIMENTOS PRODUZIDOS ARTIFICIALMENTE

|12 DE SETEMBRO|

ALGUNS escritores usam a palavra caridade para descrever não apenas o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas muitas vezes ficam preocupadas em relação ao segundo deles, pois somos ordenados a amar a Deus. Elas não conseguem descobrir nenhum sentimento desse tipo em si mesmas. Então o que fazer? A resposta continua a mesma: Aja como se você amasse. Não fique aí sentado, tentando fabricar sentimentos artificialmente. Pergunte-se a si mesmo: "Se eu tivesse certeza de que amo a Deus, o que eu faria?". Quando você descobrir a resposta, vá e faça.
De uma maneira geral, o amor de Deus por nós é um assunto muito mais seguro para se pensar do que o nosso amor por ele. Ninguém é capaz de cultivar sentimentos de devoção sempre; e, mesmo se fôssemos, é preciso considerar que os sentimentos não são a preocupação principal de Deus. O amor cristão, tanto em relação a Deus quanto em relação ao homem, é uma questão de vontade. Se nós quisermos fazer a vontade dele, teremos de obedecer ao mandamento: "Amarás ao Senhor teu Deus". Ele nos dará sentimentos de amor se isso for do agrado dele. Nós não somo capazes de criá-los por nós mesmos e não devemos exigi-los por direito. Porém, a grande coisa a lembrar é que, embora os nossos sentimentos sejam inconstantes, seu amor por nós não o é. Ele não se exaure por causa dos nossos pecados ou da nossa indiferença; consequentemente, o amor de Deus é bastante inflexível em sua determinação de que sejamos curados desses pecados, custe o que custar para nós e para ele.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

11 de setembro de 2013

INTERESSES MÚTUOS

|11 DE SETEMBRO|

POR MAIS que a caridade cristã pareça bastante fria às pessoas cujas mentes andam cheias de sentimentalismos, e por mais distinta que seja da afeição, ela acabará desembocando na afeição. A diferença entre uma pessoa cristã e uma mundana não está no fato de a pessoa do mundo só ter afeições ou "empatias" e de o cristão só ter "caridade". Quem é do mundo trata bem certas pessoas porque "gosta" delas; já o cristão, tentando tratar todos bem, acaba gostando cada vez mais das pessoas na medida que avança - inclusive pessoas de quem nem imaginava que fosse capaz de gostar um dia.
Essa mesma regra espiritual também funciona de forma terrível no sentido oposto. Os alemães começaram a tratar mal porque os odiavam; depois, por tê-los tratado tão mal, passaram a odiá-los ainda mais. Quanto mais cruel você é, mais odiará; e quanto mais odiar, mais cruel se tornará. E assim vai, num eterno círculo vicioso.
Tanto o bem quanto o mal crescem à medida que servem a interesses mútuos. Eis porque as pequenas decisões que você e eu tomamos todos os dias são de infinita importância. A menor boa ação de hoje é o estabelecimento de um ponto estratégico a partir do qual, poucos meses mais tarde, você poderá prosseguir em direção a vitórias com as quais nem sonhava. Uma aparentemente insignificante demonstração de luxúria ou ira hoje é a perda de uma cordilheira, de um trilho ou uma ponte que pode possibilitar o inimigo de armar um ataque que seria impossível de outra maneira.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

10 de setembro de 2013

A REGRA DO AMOR

|10 DE SETEMBRO|

A REGRA para todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo pensando se "ama" ou não o seu próximo; aja como se você já o amasse. Pois, assim que fizermos isso, acabaremos descobrindo um dos maiores segredos da vida. Quando você age como se amasse alguém, acaba por amá-lo de verdade. Se você ofende alguém de quem não gosta, acaba gostando dele menos ainda. Se você respondê-lo bem, vai desgostar menos dele. É claro que existe uma exceção a essa regra. Se você lhe der uma resposta gentil, não para agradar a Deus e obedecer à regra da caridade, mas para lhe provar que é uma pessoa legal e capaz de perdoar, e para deixá-lo em dívida com você, e depois sentar-se e esperar que ele demonstre a sua "gratidão", provavelmente ficará desapontado. (As pessoas não são tolas: elas logo percebem qualquer tentativa de exibição ou domínio). Porém, sempre que fazemos o bem a outro ser humano apenas porque se trata de outro ser humano criado por Deus (como nós mesmos), desejando a felicidade dele da mesma forma que desejamos a nossa, é provável que tenhamos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, desgostar dele um pouco menos.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

9 de setembro de 2013

O QUE É A CARIDADE?

|9 DE SETEMBRO|

"CARIDADE" hoje não significa apenas o que antes significava "dar esmolas" - isto é, dar aos pobres. A caridade tinha um sentido mais amplo originalmente. (Veja como a palavra adquiriu seu sentido moderno. Se a pessoa é "caridosa", dar aos pobres é uma das coisas que mais se espera que ela faça; assim, as pessoas acabaram falando desse ato como se ele fosse tudo. Da mesma forma, a "rima" é a coisa mais óbvia numa poesia, e assim as pessoas acabaram reduzindo o que entendem por "poesia" à rima e nada mais). Caridade significa "amor no sentido cristão". Porém, o amor, no sentido cristão, não significa uma emoção. Não se trata de um estado dos sentimento, e sim da vontade; esse estado da vontade que nós naturalmente temos em relação a nós mesmos e que precisamos aprender a ter em relação aos outros.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

8 de setembro de 2013

O APRENDIZADO COMO ARMA NECESSÁRIA

|8 DE SETEMBRO|

SE TODO o mundo fosse cristão, pode até ser que a educação não faria diferença alguma. Mas, do jeito que as coisas são, existirá vida cultural fora da igreja, independente de ela existir ou não dentro da igreja. Ser ignorante e simples hoje em dia - incapaz de confrontar-se com o inimigo em seu próprio território - significaria baixar a guarda e trair os nossos irmãos não-instruídos que não tem, abaixo de Deus, quem os proteja contra ataques intelectuais dos pagãos, a não ser nós mesmos. Se há uma boa razão para se praticar a boa filosofia é a necessidade de se responder à má filosofia. O intelecto frio precisa lutar não somente contra outro intelecto frio, mas também contra os misticismos confusos dos pagãos, que negam o intelecto como um todo. Talvez, mais do que tudo, precisamos de um conhecimento íntimo com o passado. Não que o passado envolva alguma mágica, mas porque não temos como estudar o futuro, e precisamos de alguma coisa para contrastar com o presente, algo que nos lembre que os pressupostos básicos variam bastante em diferentes épocas e que muita coisa que parece certa para os pouco instruídos não passa de um modismo temporário. Uma pessoa que já tenha vivido em muitos lugares dificilmente se deixaria enganar pelos erros locais de sua cidade natal; o acadêmico vive em diferentes épocas e, por isso, é imune, até certo ponto, às bobagens que jorram da imprensa e dos demais meios de comunicação da sua época.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

7 de setembro de 2013

O APRENDIZADO COMO VOCAÇÃO

|7 DE SETEMBRO|

A EDUCAÇÃO, os talentos e as circunstâncias de uma pessoa normalmente são indicadores aceitáveis da sua vocação. Se os nossos pais nos mandaram estudar em Oxford e o nosso país nos deu a chance de continuar ali, essa é uma evidência primária de que, em todos os sentidos, a vida que melhor podemos dedicar para a glória de Deus no momento é aquela voltada ao aprendizado. O que quero dizer com dedicar a vida para a glória de Deus não é, de forma alguma, tentar fazer com que todas as nossas investigações intelectuais redundem em conclusões edificantes. Como diria Bacon, isso seria oferecer ao autor da verdade o impuro sacrifício de uma mentira. Estou falando da busca do conhecimento e da beleza, em um certo sentido, por si mesmos, mas, em outro, em relação a Deus. Há um gosto natural na mente humana por coisas assim e Deus certamente não criou esse gosto em vão. Por isso, podemos buscar o conhecimento e a beleza por si mesmos, pois, agindo assim, estaremos avançando em nossa própria visão de Deus ou ajudando outros a avançar. A humildade, não menos do que o gosto, nos encoraja a nos concentrarmos simplesmente no conhecimento ou na beleza, sem nos preocuparmos tanto com a sua relevância final na visão de Deus. Quem sabe essa relevância não seja para nós, mas para pessoas melhores do que nós - aquelas que vem depois de nós e encontram o significado espiritual daquilo que buscávamos em obediência cega e humilde à nossa vocação. [...] A vida intelectual não é o único caminho para Deus, nem mesmo o mais seguro, mas nós a vemos como um caminho, e talvez seja o caminho indicado para nós.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

6 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [06.09.2013]

AS EXIGÊNCIAS DA RELIGIÃO: FAZER TUDO PARA A GLÓRIA DE DEUS

|6 DE SETEMBRO|

É POR UMA razão bem diferente que a religião não pode ocupar a totalidade da vida no sentido de excluir todas as nossas atividades naturais. É claro que, em certo sentido, ela deve ocupar a nossa vida toda. Não há dúvida quanto ao compromisso que há entre as exigências de Deus e as da cultura, ou da política, ou de qualquer outra coisa. A exigência de Deus é infinita e inexorável. Você pode recusá-la ou começar a tentar aceitá-la. Não há meio-termo. Entretanto, apesar disso, está claro que o cristianismo não exclui nenhuma das atividades humanas ordinárias. Paulo recomenda às pessoas que continuem nos seus empregos. Ele até admite que os cristãos frequente festas noturnas; e mais, festas oferecidas por pagãos. Nosso Senhor participou de uma festa de casamento e até providenciou o milagre do vinho. O conhecimento e as artes floresceram sob a égide da sua Igreja e ao longo da maioria das eras cristãs. É claro que a solução desse paradoxo é bastante conhecida: "Quer comais, quer bebais ou façais alguma outra coisa, faça tudo para a glória de Deus".
Todas as nossas atividades simplesmente naturais - até a mais humilde de todas -, serão aceitáveis se forem ofertadas a Deus, e todas elas, até a mais nobre, serão pecaminosas se não forem ofertadas a Deus. O que o cristianismo faz não é apenas substituir a nossa vida natural por uma nova; ele é, antes, uma nova organização que explora esses materiais naturais para os seus próprios fins sobrenaturais.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

5 de setembro de 2013

AS EXIGÊNCIAS DA GUERRA: RENDER-SE A CÉSAR

|5 DE SETEMBRO|

A GUERRA falhará em absorver toda nossa atenção, porque se trata de um objeto finito e, por isso, intrinsecamente inadequado para suportar toda a atenção de uma alma humana. Para evitar mal-entendidos, é preciso fazer algumas distinções. Acredito que a nossa causa é muito justa, como costuma acontecer com as causas humanas, e isso me faz acreditar que seja o nosso dever participar dessa guerra. Todo dever é um dever religioso, e nossa obrigação de cumprir esse dever é absoluta. Assim, pode até ser que tenhamos o dever de salvar uma pessoa que está se afogando e, quem sabe, se vivemos em uma praia perigosa, de nos preparar para o ofício de salva-vidas, de modo que estejamos prontos caso apareça alguém se afogando. Quem sabe até tenhamos de perder a nossa própria vida para salvar uma pessoa. Mas, se um dia alguém se devotasse ao ofício de salvar vidas no sentido de dedicar-se totalmente a isso - de modo que não pensasse ou falasse de outra coisa, ou exigisse que todas as demais atividades humanas cessassem até que todas as pessoas aprendessem a nadar-, ele seria um maníaco obsessivo. Assim, salvar a vida das pessoas que estão se afogando é um dever pelo qual vale a pena morrer, mas não para o qual valha a pena viver. Tudo indica que os deveres políticos (entre os quais eu incluiria os deveres militares) sejam desse tipo. Uma pessoa pode ter de morrer pelo seu país, mas ninguém precisa viver por ele em um sentido exclusivo. Aquele que se entrega sem reservas aos apelos temporais de uma nação, de um partido, ou de uma classe, está dando a César algo que, de maneira mais do que enfática, pertence a Deus: está dando a si mesmo.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

4 de setembro de 2013

A EXIGÊNCIAS IMAGINÁRIAS DA GUERRA E DA RELIGIÃO

|4 DE SETEMBRO|

ANTES de me tornar cristão, acho que não me dava conta de que, depois da conversão, a vida consistiria basicamente em se continuar fazendo a maioria das coisas que se fazia antes - espera-se que com um novo espírito, mas, ainda, as mesmas coisas. Antes da minha partida para a última guerra, certamente esperava que a minha vida nas trincheiras fosse, de alguma forma misteriosa, apenas guerra. Na verdade, o que eu descobri foi que, quanto mais nos aproximávamos da linha de frente, menos falávamos e pensávamos na causa dos aliados e no progresso da campanha; e me deliciei com a descoberta de que Tolstoi, no maior livro já escrito sobre a guerra, faz o mesmo registro - e o mesmo acontece, à sua própria maneira, em Ilíada. Nem a conversão, nem o alistamento no exército jamais serão capazes de realmente destruir o lado humano da nossa vida. Os cristãos e os soldados ainda são humanos; a ideia que os infiéis tem de uma vida religiosa e que um civil tem do serviço no exército é fantasiosa. Se você tentasse suspender toda a sua atividade intelectual e estética em qualquer um dos casos, conseguiria apenas substituir uma vida cultural ruim para uma melhor. Você não deixará de ler, nem na igreja, nem na linha de frente; e, se não ler bons livros, lerá livros de péssima qualidade. Se você rejeitar o pensamento racional, acabará pensando irracionalmente. Se rejeitar a satisfação estética, acabará optando pela satisfação sensual.
Por isso é que existe essa analogia entre as afirmações da nossa religião e as afirmações da guerra: para a maioria de nós nenhuma delas será capaz de simplesmente anular ou apagar a vida humana que levávamos antes de entrar nelas.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

3 de setembro de 2013

MÚSICA DO DIA [03.09.2013]

VIVENDO À BEIRA DO PRECIPÍCIO

|3 DE SETEMBRO|

A CONDIÇÃO de guerra não é nenhuma novidade; ela simplesmente agrava a condição humana, de modo que não mais tenhamos como ignorá-la. A vida humana sempre foi vivida à beira de um precipício. A cultura humana sempre teve de existir sob a mesma sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. Se o homem tivesse adiado a busca pelo conhecimento e pela beleza até que estivesse seguro, jamais teria começado essa busca. É um engano querer comparar a guerra com a "vida normal". A vida nunca foi normal. Mesmo aqueles períodos que consideramos os mais tranquilos, como o século dezenove, acabam se revelando, em uma análise mais atenta, como cheios de crises, ameaças, dificuldades e emergências. Nunca faltaram bons motivos para se interromper atividades puramente culturais até que algum grande perigo tenha sido evitado ou alguma injustiça gritante, posta em ordem. Contudo, a humanidade optou, há muito tempo, por descartar as razões mais plausíveis. Ela passou a desejar o conhecimento e a beleza agora, se esperar pelo momento certo, que nunca chega. Péricles de Atenas não nos legou apenas Parthenon, mas também sua Oração Fúnebre. Os insetos escolheram uma estratégia diferente: eles buscam, acima de tudo, a segurança e o bem-estar material das colmeias e dos casulos, e provavelmente tem a sua recompensa. Os seres humanos são diferentes. Eles propõem teoremas matemáticos em cidades sitiadas, defendem argumentos metafísicos em celas de condenados, contam piadas na fila de execução, discutem o mais novo poema enquanto avançam sobre os muros de Quebec, e penteiam o cabelo na batalha de Thermopylae. Isso não é estilo; é a nossa natureza.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

2 de setembro de 2013

PASSADO, PRESENTE E FUTURO

|2 DE SETEMBRO|

Estratégias de Screwtape para ensinar Wormwood a usar o tempo como arma

É CLARO que não me passou despercebido que os homens deram uma trégua na guerra europeia - ou isso que eles ingenuamente chamam de "A guerra"! -, e não estou muito surpreso de identificar a mesma trégua nas ansiedades do paciente. Seria melhor encorajar esse tipo de coisa ou mantê-lo preocupado? Tanto o pavor torturante quanto a confiança cega são estados mentais igualmente desejáveis. Nossa opção entre um ou outro levanta questões importantes.
Os seres humanos vivem no tempo. Porém, o Inimigo [Deus] os destinou à eternidade. É por isso, acredito, que ele quer que os homens atentem basicamente para duas coisas: a própria eternidade e aquele ponto do tempo que chamam de presente. O presente é o ponto em que o tempo toca a eternidade. É no momento presente, e apenas nele, que os seres humanos tem experiências semelhantes àquela experiência que o nosso Inimigo [Deus] tem da realidade como um todo; é somente nele que lhe são oferecidas a liberdade e a realidade. É por isso que ele quer que os homens estejam constantemente atentos ou a eternidade (o que significa mantê-lo em mente) ou ao presente - quer seja meditando sobre a sua eterna união com ele ou sobre a eterna separação, ou então obedecendo à voz presente da consciência, carregando a cruz de hoje, recebendo a graça para hoje e dando graças pelo prazer no presente.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

1 de setembro de 2013

SEM EXCEÇÕES

|1 DE SETEMBRO|

NO QUE diz respeito aos meus próprios pecados, é bastante segura (ainda que incerta) a aposta de que minhas desculpas não são tão boas quanto eu imagino; no que diz respeito aos pecados dos outros contra mim, é seguro (ainda que incerto) apostar que suas desculpas são melhores do que eu imagino. Por isso temos de começar por prestar atenção a tudo que possa mostrar que o outro não merece tanta censura quanto nós achávamos. Mas, mesmo se ele for absolutamente culpado, continuamos tendo de perdoá-lo; e ainda que noventa e nove por cento da sua aparente culpa possa ser explicada por desculpas realmente convincentes, o problema do perdão começa com aquele um por cento de culpa que ainda resta. Desculpar o que pode realmente ter uma boa desculpa não é caridade cristã, é apenas justiça. Ser cristão significa perdoar o indesculpável, porque Deus perdoou o indesculpável em você
Isso é duro. Talvez não seja tão duro quanto perdoar uma única grande injúria. Mas como seríamos capazes de perdoar as persistentes provocações do cotidiano (continuar perdoando a sogra mandona, o marido tirano, a esposa implicante, a filha egoísta e o filho salafrário)? Só mesmo, acredito eu, colocando-nos em nosso lugar, acreditando no que dizemos todas as noites em nossas orações: "Perdoa os nossos pecados, assim como nós perdoamos os nossos devedores". O perdão não nos é oferecido em nenhum outro termos. Recusá-lo significa recusar a graça de Deus para nós mesmos. Não há indícios de exceções, e Deus sabe bem o que está falando.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]