31 de dezembro de 2013

A GLÓRIA COMO BRILHO, ESPLENDOR E LUMINOSIDADE

|31 DE DEZEMBRO|

ISSO me leva ao outro sentido da palavra glória - glória como brilho, esplendor e luminosidade. Nós devemos brilhar como o sol; fomos criados para receber a Estrela da Manhã. Acredito que estou começando a ver o que isso significa. De uma certa forma, é claro que Deus já nos deu a Estrela da Manhã: você pode desfrutar do presente de muitas alvoradas fantásticas se acordar cedo o suficiente. O que mais, você poderia perguntar, nós queremos? Ah, mas nós desejamos muito mais - algo a mais que os livros sobre estética dão pouca atenção. Mas os poetas e as mitologias sabem tudo sobre esse assunto. Não desejamos simplesmente ver a beleza, embora Deus sabe, isso há seja recompensa suficiente. O que desejamos é algo que mais dificilmente conseguiremos expressar em palavras - desejamos ser unidos com a beleza que podemos ver, passar para dentro dela, recebê-la dentro de nós, nadar nela, nos tornar parte dela. É essa a razão porque nós enchemos o ar, a terra e a água com deuses e deusas, ninfas e elfos - embora não consigamos, essas projeções podem desfrutar nelas a beleza, a graça e o poder nos quais a natureza é a imagem. Eis porque os poetas nos contam tantas falsidade amáveis. Eles falam como se o vento do oeste pudesse realmente soprar dentro da alma humana, mas não pode. Eles nos contam que a "beleza que nasce do murmúrio" se transformará em uma face humana; mas isso não acontecerá. Ou, pelo menos, ainda não, porque, se levarmos a sério o imaginário das Escrituras, se acreditarmos que Deus realmente irá nos dar a Estrela da Manhã e fazer com que nós absorvamos o esplendor do sol, então poderemos supor que tanto os mitos antigos quanto a poesia moderna, tão falsos quanto a história, podem estar tão perto da verdade quanto as profecias. No presente momento, estamos do lado de fora do mundo, do lado errado da porta. Nós discernimos o frescor e a pureza da manhã, mas eles não nos tornam frescos e puros. Não temos como nos misturar com o esplendor que vemos. Porém, cada página do Novo Testamento sussurra o rumor de que isso não será assim para sempre. Se Deus quiser, um dia seremos autorizados a entrar.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

30 de dezembro de 2013

AS DELÍCIAS DO CÉU

|30 DE DEZEMBRO|

A MAÇÃ dourada do "eu", lançada entre os falsos deuses, transformou-se em um pomo de discórdia, porque eles competiam por ela. Não conheciam a primeira regra do jogo sagrado que diz que cada jogador deve, de qualquer jeito, passar a bola adiante assim que tocar nela. Ser pego com ela nas mãos é falta; agarrar-se a ela é morte. Porém, quando a bola vai e vem entre os jogadores, em passes rápidos demais para serem seguidos com os olhos, e o Senhor majestoso, ele mesmo, passa a liderar a celebração, oferecendo-se eternamente a suas criaturas no ato de gerar, e de volta a si mesmo no sacrifício pelo mundo, na verdade, a dança eterna "acalenta o céu com sua harmonia". Os movimentos dessa dança representam todas as dores e todos os prazeres que conhecemos na terra; mas a dança em si é estritamente incomparável com os sofrimentos do tempo presente. À medida que começamos a entrar no seu ritmo não-criado, a dor e o prazer quase desaparecem de vista. Existe alegria na dança, mas ela mesma não existe por causa da alegria. Ela não existe nem mesmo por causa do bem ou do amor. Ela é o próprio amor e o próprio bem, e, portanto, feliz. Ela não existe para nós, mas nós para ela. [...]

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

29 de dezembro de 2013

UM HINO À CRIAÇÃO DE DEUS

|29 DE DEZEMBRO|

FALAVA há pouco da latinidade do latim. Ela é mais evidente para nós do que seria para os romanos. Só percebemos a anglicidade do inglês quando conhecemos outra língua. Da mesma maneira, e pela mesma razão, só os sobrenaturalistas podem ver a natureza como ela é. É preciso afastar-se um pouco dela para depois virar-se e olhar para trás. Só então é que poderemos vislumbrar o verdadeiro cenário. Você precisará ter experimentado, ainda que brevemente, a água pura que está além do mundo para estar distintamente consciente do morno e salino sabor da corrente da natureza. Tratá-la como Deus, ou como tudo, é perder toda a sua essência e o seu prazer. Afaste-se, olhe para trás, e então verá... essa surpreendente catarata de ursos, bebês e bananas; esse dilúvio incessante de átomos, orquídeas, laranjas, caranguejos, canários, pulgas, gases, tornados e sapos. Como você pode pensar que essa era a realidade final? Como nunca pensou que se tratava simplesmente de um cenário para o drama moral da humanidade? Ela é ela mesma. Não lhe ofereça nem adoração, nem desprezo. Vá ao seu encontro e a conheça. Se somos imortais e se ela está condenada (como dizem os cientistas) a se deteriorar e morrer, vamos sentir falta dessa criatura meio tímida e meio ousada; esse ogro, essa fada travessa e incorrigível, essa feiticeira muda. Porém, os teólogos dizem que ela será remida da mesma forma que nós. A "vaidade" a que estava submetida era a sua doença e não a sua essência. Ela será curada no caráter; não domesticada (que os céus impeçam) nem esterilizada. Ainda estaremos em condições de reconhecer nossa velha inimiga, amiga, companheira e mãe adotiva, tão perfeita e mais ela mesma do que nunca. E esse será um encontro feliz.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

28 de dezembro de 2013

BEBENDO ALEGRIA DIRETO DA FONTE

|28 DE DEZEMBRO|

QUANDO as almas humanas se tornarem perfeitas na plena obediência voluntária, como a criação inanimada o é na sua obediência inerte, então elas assumirão a glória, ou melhor, aquela glória maior da qual a natureza não passa do primeiro esboço. Você não deve achar que estou querendo transmitir alguma ideia pagã de ser absorvido pela natureza. A natureza é mortal; devemos viver além dela. Quando todos os sóis e nebulosas tiverem passado, cada um de vocês ainda estará vivo. A natureza é apenas uma imagem, o símbolo; mas o símbolo que as Escrituras me convidam a usar. Nós somos chamados a passar pela natureza e a transcendê-la, para dentro do esplendor que ela adequadamente reflete.
Então, para além da natureza, haveremos de nos alimentar da árvore da vida. Na vida presente, se tivermos renascido em Cristo, o espírito dentro de nós vive diretamente em Deus; mas a mente e, mais ainda, o corpo, recebem a vida dele a partir de milhares de aspectos - por meio dos nossos ancestrais, da nossa comida, dos elementos. Os parcos e longínquos resultados resultados daquelas energias implantadas na matéria pelo êxtase criativo de Deus ao fazer os mundos, são o que hoje chamamos de prazeres carnais; e mesmo filtrados, são demais para conseguirmos administrar no presente. Como será provar na nascente aquele riacho que mesmo nos níveis mais baixos se mostra tão envolvente? Entretanto, é exatamente isso que, acredito, parece estar diante de nós. O homem completo beberá alegria da fonte da alegria. Como disse Santo Agostinho, o êxtase da alma salva acabará por "transbordar" para dentro do corpo glorificado.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

27 de dezembro de 2013

UM NOVO E SECRETO NOME

|27 DE DEZEMBRO|

A COISA que você mais busca o atrai para fora do seu "eu". Até o desejo pela coisa só subsistirá se você o abandonar. Esta é a lei última: a semente morre para viver; o pão precisa ser lançado sobre as águas; o que perde a sua alma a ganhará. Porém, a vida da semente, a descoberta do pão, a recuperação da alma são tão reais quanto o sacrifício anterior. Assim, diz-se com verdade a respeito do céu: "No céu não há propriedade. Se qualquer um ali chamasse algo de seu, seria imediatamente lançado no inferno, tornando-se um espírito maligno". Porém, diz também: "Ao que for vitorioso, darei uma pedra branca, e na pedra estará gravado um nome novo que ninguém mais conhece, a não ser aquele que o recebe" (Ap. 2.17). O que pode pertencer mais a um homem do que este novo nome que, mesmo na eternidade, permanece um segredo entre Deus e ele? E que significado devemos dar a esse segredo? É certo que cada um dos remidos acabará conhecendo e louvando eternamente algum aspecto da beleza divina melhor do que qualquer outra criatura poderia fazê-lo. Para o que mais os indivíduos foram criados, senão para que Deus, amando infinitamente mais a todos, pudesse amar a cada um de forma inversa? E essa diferença, então, longe de prejudicar, enche de significado o amor de todas as criaturas abençoadas umas pelas outras, na comunhão dos santos. Se todos experimentassem a Deus do mesmo jeito e o adorassem de maneira idêntica, o louvor da igreja deixaria de ser aquela sinfonia, reduzindo-se a uma orquestra em que todos os instrumentos tocam a mesma nota.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

26 de dezembro de 2013

A ASSINATURA DA ALMA

|26 DE DEZEMBRO|

TAL assinatura inscrita em cada alma pode ser um produto da hereditariedade e do ambiente, mas isso só significa que tanto a hereditariedade quanto o ambiente estão entre os instrumentos por meio dos quais Deus cria uma alma. Estou considerando não o como, mas a razão porque Deus fez cada alma única. Se não houvesse uso para todas essas diferenças, não vejo porque ele deveria ter criado mais de uma alma. Pode ter certeza de que ele conhece a sua individualidade por dentro e por fora; e um dia ela também não será mais um mistério para você. O molde com que é feita uma chave seria estranho se você nunca tivesse visto uma chave; e a própria chave também lhe parecia estranha se você nunca tivesse visto uma fechadura. Sua alma tem um formato curioso porque se trata de um buraco feito para encaixar uma substância especial nos contornos infinitos da essência divina, ou uma chave para abrir uma das portas da casa que tem muitas moradas. Não é a humanidade de maneira abstrata que deve ser salva, mas você - você, leitor. Abençoada e afortunada criatura, os seus olhos irão contemplá-lo, e não os de outro! Tudo o que você é, com exceção dos pecados, está destinado a ser saciado, se você permitir que Deus realize o seu bom propósito.
O espectro de Broeken "parecia para cada homem seu primeiro amor" porque era uma fraude. Porém, Deus haverá de parecer o primeiro amor de cada alma porque ele é, de fato, seu primeiro amor. Seu lugar no céu parecerá ter sido feito para você e só para você, porque você foi feito para ele - feito para ele ponto por ponto, como uma luva é feita sob medida para uma mão.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

25 de dezembro de 2013

O GRANDE MILAGRE

|25 DE DEZEMBRO|

O MILAGRE central sustentado pelos cristãos é a encarnação. Eles dizem que Deus se fez homem. Todos os outros milagres conduzem a esse, ou o exibem, ou resultam dele. Assim como todo evento natural é a manifestação do caráter total da natureza em um lugar e em um momento específicos, todo milagre cristão é a manifestação do caráter e do significado da encarnação em lugares e momentos específicos. No cristianismo não há a possibilidade de interferências arbitrárias simplesmente espalhadas por aí. Não se trata de uma série de rápidas e desconexas incursões na natureza, mas de vários passos de uma invasão estrategicamente coerente - uma invasão que busca a conquista e a ocupação completa. A adequação e, portanto, a credibilidade dos milagres dependem da relação deles com o milagre central; toda discussão sobre eles de forma isolada é fútil.
A adequação ou credibilidade do grande milagre em si não pode, obviamente, ser julgada pelo mesmo padrão. E deixe-nos admitir de uma vez que é muito difícil encontrar um padrão pelo qual ele possa ser julgado. Se a encarnação aconteceu, foi o evento central da história da terra - é o evento em torno do qual toda história gira. [...] É mais fácil argumentar, no campo histórico, que a encarnação realmente aconteceu, do que mostrar, no campo filosófico, a probabilidade da sua ocorrência. A dificuldade histórica histórica em dar uma explicação para a vida, para os pronunciamentos e as influências de Jesus, que não seja mais dura do que a explicação cristã, é muito notável. A discrepância entre a profundidade, a sanidade e (deixe-me acrescentar) a astúcia do ensino moral de Jesus e a megalomania descontrolada que estaria por trás do seu ensino teológico se ele não fosse de fato Deus, nunca foi satisfatoriamente superada.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

24 de dezembro de 2013

MÚSICA DO DIA [24.12.2013]



DEUS DESCENDE PARA REASCENDER

|24 DE DEZEMBRO|

DE ACORDO com a história cristã, Deus descende para reascender. Ele desce, das alturas da existência absoluta no tempo e espaço, até a humanidade. E desce ainda mais, caso os embriologistas tenham razão, para recapitular no ventre as fases antigas e pré-humanas da vida. Desce até às próprias raízes da natureza por ele criada. Entretanto, ele desce para subir de novo, trazendo consigo todo o mundo arruinado. Isso nos faz pensar em um homem forte abaixando-se cada vez mais para colocar-se debaixo de um grande e complexo fardo. ele deve abaixar-se para o levantar, deve desaparecer sob a carga, antes de endireitar incrivelmente as costas e seguir avante com toda a imensa massa balançando em seus ombros. Podemos imaginar também um mergulhador, primeiro se despindo, depois olhando para o ar, e, por fim, atirando-se e desaparecendo, precipitando-se da água azul e cálida para aquela negra e fria, passando por uma pressão cada vez mais crescente, atingindo a região funesta do lodo, limo e decadência. A seguir ele volta à cor e à luz, com os pulmões quase arrebentando, até finalmente surgir na superfície, trazendo nas mãos o objeto precioso, gotejante, que foi buscar lá embaixo. Tanto ele quanto o objeto possuem agora certo colorido, uma vez que voltaram à luz; mas lá embaixo, na escuridão em que se achava, ele também havia perdido a sua cor.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

23 de dezembro de 2013

DO MAIOR PRO MENOR

|23 DE DEZEMBRO|

A DISCREPÂNCIA entre um movimento de átomos no córtex de um astrônomo e a compreensão deste sobre o fato de haver um planeta ainda não observado além de Urano é tão imensa, que a encarnação do próprio Deus, num certo sentido, deixa de ser mais surpreendente. Não podemos conceber como foi possível ao Espírito Divino habitar o espírito criado e humano de Jesus; mas também não conseguimos conceber como o seu espírito humano, ou o de qualquer homem, é capaz de habitar no interior de seu corpo natural. O que podemos compreender, caso a doutrina cristã seja verdadeira, é que a nossa existência composta não é a completa anomalia que parece ser, mas uma imagem pálida que lembra a encarnação divina: o mesmo tema em escala muito menor. Podemos entender que, se Deus é capaz de descer assim sobre um espírito humano, e o espírito humano; e os nossos pensamentos, aos nossos sentidos e paixões; e se as mentes adultas (mas só as melhores) podem descer e simpatizar com crianças; e os homens com os animais, então tudo se une e a realidade total na qual vivemos - tanto natural quanto a sobrenatural -, é mais variada e delicadamente harmoniosa do que havíamos suspeitado. Tomamos conhecimento de um novo princípio-chave: o poder do Altíssimo de descer, na medida em que é verdadeiramente altíssimo; o poder do maior de incluir o menor. Os corpos sólidos exemplificam, assim, muitas verdades da geometria plana, mas as figuras planas não exemplificam verdades da geometria sólida. Muitas proposições inorgânicas são verdadeiras quanto aos organismos, mas as proposições orgânicas não se aplicam aos minerais. Montaigne brincava com sua gatinha, mas ela nunca discutia filosofia com ele. Em toda parte, o grande penetra o pequeno - seu poder para tanto é praticamente o teste da sua grandeza.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

22 de dezembro de 2013

PENSE EM ALGO ASSIM

|22 DE DEZEMBRO|

SUPONHAMOS que possuímos partes de um romance ou de uma sinfonia. Então, alguém nos traz um novo trecho, descoberto recentemente, e diz: "Eis aqui a parte da obra que faltava. Este é o capítulo em que todo o romance se baseia. Este é o tema principal da sinfonia". Nossa tarefa seria ver se o novo trecho, caso admitido como parte central, conforme reivindica seu descobridor, é capaz de orientar e unir todas as partes que já vimos. Provavelmente não gostaríamos de ir longe demais no erro. Se essa nova passagem fosse falsa, por mais atrativa que pudesse parecer em princípio, quanto mais fosse considerada, mais se tornaria difícil de conciliar com o resto da obra. Porém, se o trecho fosse genuíno, então, toda vez que a sinfonia fosse ouvida, ou o livro lido, veríamos sua acomodação cada vez maior; ele ficaria à vontade e elucidaria significados em toda sorte de detalhes que até então havíamos negligenciado. Mesmo que o novo capítulo ou tema principal contivesse grandes dificuldades em si mesmo, poderíamos continuar considerando-o genuíno desde que ele continuasse a sanar dificuldades em outros pontos. Temos de fazer algo desse tipo com a doutrina da encarnação. Aqui, em vez de uma sinfonia ou um romance, temos o conjunto do nosso conhecimento. A credibilidade dependerá da extensão em que a doutrina, caso aceita, é capaz de integrar e esclarecer todo esse conjunto. É muito menos importante que a doutrina, em si mesma, seja totalmente compreensível. Cremos que o sol está no céu ao meio-dia, no verão, não porque podemos vê-lo claramente (de fato, não podemos), mas porque podemos ver tudo o mais.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

21 de dezembro de 2013

UM DEUS DISTINTO

|21 DE DEZEMBRO|

O QUE os cristãos alegam não é que "Deus" tenha simplesmente se encarnado em Jesus. Eles alegam que aquele a quem os judeus serviam e conheciam como Jeová é o único e verdadeiro Deus e que foi ele que desceu à terra. Agora, eis aqui o duplo caráter de Jeová. Por um lado, ele é o Deus da natureza, o seu feliz criador. É ele que faz a chuva cair sobre o arado até que os vales fiquem plenamente coberto de cereais, causando risos e canções. As árvores da floresta se regozijam diante dele e a sua voz faz com que os veados selvagens concedam seus filhotes. Ele é o Deus do trigo, do vinho e do óleo. Com relação a isso, ele está sempre fazendo tudo o que os demais deuses da natureza fazem: ele é Baco, Vênus, Ceres, e todos de uma vez. [...]
Por outro lado, Jeová claramente não é um Deus da natureza. Ele não morre e volta à vida todos os anos como o deus do trigo deveria fazer. [...] Ele não é a alma da natureza, nem alguma parte dela. Ele habita a eternidade: reside nos mais altos e sagrados lugares; o céu é o seu trono, não o seu veículo; a terra é o apoio dos seus pés, e não a sua vestimenta. Um dia ele irá desmantelar ambos e fazer um novo céu e uma nova terra. Ele não deve ser identificado nem menos com a "centelha divina" no homem. Ele é "Deus e não um homem". [...]
Jeová não é nem a alma nem o inimigo da natureza. [...] Ela é sua criatura. Ele não é nenhum dos deuses da natureza, mas o Deus da natureza - seu inventor, criador, dono e controlador. Para todos que leem este livro, essa concepção tem sido familiar desde a infância; é por isso que tão facilmente achamos que se trata da concepção mais comum e rudimentar do mundo. "Se as pessoas vão crer num Deus", perguntamos, "em que outro tipo de Deus elas poderiam acreditar?". E a resposta da história é: "Praticamente em qualquer outro tipo".

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

20 de dezembro de 2013

UM SOLDADINHO DE CHUMBO GANHA VIDA

|20 DE DEZEMBRO|

COMO consequência, temos agora um homem que foi o que todos os homens deveriam ter sido: um homem em que a vida criada, derivada de sua mãe, pode transformar-se completa e totalmente na vida gerada. A criatura humana natural que estava nele foi completamente posta no Filho divino. Assim, de uma só vez, a humanidade, por assim dizer, chegou: passou para a vida de Cristo. E porque, para nós, toda a dificuldade é que a vida natural tinha de ser, por assim dizer, "morta", ele escolheu uma carreira terrena que envolvia matar os seus desejos humanos a cada momento - pobreza, incompreensão da parte da sua própria família, traição da parte de um dos seus amigos íntimos, zombaria e maus-tratos por parte dos guardas e execução pela tortura. E então, depois de ter sido assim morto - morto todos os dias, em certo sentido -, a criatura humana em Cristo, porque estava unida ao Filho divino, ressuscitou. O homem em Cristo voltou a viver novamente; não apenas o Deus. Eis aí toda a questão. Pela primeira vez nós vimos um homem de verdade. Um soldadinho de chumbo - de chumbo mesmo, como os demais - tornou-se vivo de forma plena e gloriosa.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

19 de dezembro de 2013

OBSTINADO SOLDADINHO DE CHUMBO

|19 DE DEZEMBRO|

VOCÊ nunca pensou, quando criança, o quanto seria divertido se os seus brinquedos ganhassem vida? Bem, suponha que você realmente os tenha trazido à vida. Imagine que você possa transformar seus soldadinhos de chumbo em homenzinhos de verdade. Isso envolveria transformar chumbo em carne. E se o soldadinho de chumbo não gostar disso? Ele pode não estar interessado em carne; tudo o que ele vê é que o chumbo está sendo estragado, e pensa que você o está matando. Ele fará de tudo para impedi-lo. O soldadinho de chumbo não se tornará homem se puder evitar.
Não faço ideia do que você faria com aquele soldado de chumbo. Porém, o que Deus fez a nosso respeito foi o seguinte: a segunda pessoa em Deus, o Filho, tornou-se ele mesmo um ser humano, nascendo em um mundo como um homem de verdade - um ser humano real, com uma altura específica, com cabelo de uma cor específica, falando determinada língua e pesando tantos quilos. O ser eterno, que sabe de tudo e que criou todo o universo, não apenas se tornou homem, mas (antes disso) um bebê e, antes, um feto no interior do corpo de uma mulher. Para se ter uma ideia disso, imagine como seria se você se tornasse um caracol ou uma lesma.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

18 de dezembro de 2013

DESCOBRINDO O SEU CÍRCULO DE AMIGOS VERDADEIROS

|18 DE DEZEMBRO|

A QUESTÃO do círculo fechado acabará te destruindo a menos que você a destrua. Porém, se você a destruir, o resultado será surpreendente. Se, em suas horas de trabalho, você faz do trabalho o seu fim, você instantaneamente acabará se encontrando, sem querer, dentro do único círculo em sua profissão que realmente interessa. Você será um dos especialistas e os outros especialistas o saberão muito bem. Tal grupo de especialistas não coincidirá, de forma alguma, com o círculo fechado ou com o grupo de pessoas importantes ou com as pessoas detentoras do saber. Ele não elaborará aquela política profissional nem articulará aquele movimento profissional que luta pela profissão como um todo contra o público, e também não fomentará aqueles escândalos e crises periódicos que o círculo fechado fomenta. Porém, ele fará coisas que aquela profissão existe para fazer e, a longo prazo, será responsável por todo o respeito que essa profissão goza e que nenhum discurso e propaganda seriam capazes de alcançar. E, se, em suas horas vagas, você simplesmente se junta com pessoas das quais você gosta, acabará, mais uma vez sem querer, achando-se no verdadeiro lado de dentro, percebendo que está seguro e confortável no centro de algo que, visto de fora, parecia exatamente um círculo fechado. Mas a diferença é que sua confidencialidade é acidental e a sua exclusividade é uma consequência, e ninguém é levado para dentro por algum encanto esotérico, pois são apenas quatro ou cinco pessoas que gostam umas das outras e se encontram para fazer coisas de que gostam. Isso se chama amizade. Aristóteles a identificou entre as virtudes. Ela é a causa, quem sabe, da metade da alegria que se pode ter neste mundo, e nenhum círculo fechado jamais poderia tê-la.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

17 de dezembro de 2013

PORQUE NÃO SER UM CAÇADOR DE CÍRCULOS FECHADOS

|17 DE DEZEMBRO|

PARA nove entre dez de vocês, a escolha capaz de levá-los à canalhice surgirá, quando surgir, em cores nada chocantes. Homens obviamente maus, que ameaçam ou subornam, quase não aparecerão. A oportunidade aparecerá entre uma bebida ou uma xícara de café, sob o disfarce de alguma trivialidade e entre uma piada e outra vinda dos lábios de um homem ou de uma mulher que você recentemente conheceu melhor e a quem você espera conhecer ainda mais - justo no momento em que você está mais ansioso em não parecer cruel, ingênuo ou esnobe. Será a dica de algo que não está muito de acordo com as regras técnicas do jogo limpo; algo que o público, ignorante e romântico, jamais entenderia; algo que até os de fora da sua própria profissão estariam aptos a denunciar; mas algo que "nós", diz seu novo amigo - e ao ouvir "nós" você tentará não ficar corado pelo simples prazer -, algo que "nós sempre fazemos". E você será levado para dentro não pelo desejo de lucro ou sossego, mas simplesmente porque, agora que o copo está tão perto dos seus lábios, você não suportaria ser empurrado de volta para o mundo escuro do lado de fora. Seria terrível ver a face do outro homem - aquela face genial, confidente e deliciosamente sofisticada - tornar-se subitamente fria e desprezível ao saber que você havia tentado fazer parte do círculo fechado e fora rejeitado. E, depois, se você for aceito, na semana seguinte será algo mais aquém das regras, e no ano que vem, mais ainda; mas tudo isso em meio a mais alegre e amigável atmosfera. Tudo pode acabar em um flagrante, em um escândalo e um serviço penal; talvez acabe em milhões, em reconhecimento e recompensas para seus companheiros. Mas você terá se tornado um canalha.
[...] De todas as paixões humanas, a paixão pelo círculo fechado é a mais habilidosa em fazer um homem que ainda não é muito mau praticar todo tipo de maldade.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

16 de dezembro de 2013

UMA MOLA PROPULSORA DA AÇÃO HUMANA

|16 DE DEZEMBRO|

MINHA intenção principal com este texto é simplesmente convencê-lo de que esse desejo é uma das grandes molas propulsoras permanentes da ação humana. Trata-se de um dos fatores que chegam a constituir o mundo da maneira como o conhecemos - todo emaranhado de luta, competição, confusão, suborno, desapontamento e propaganda, e se essa for uma das molas propulsoras permanentes, então você pode ter toda a certeza. A menos que você tome medidas preventivas, esse desejo acabará se tornando um dos principais fatores da motivação da sua vida, desde o primeiro dia em que você ingressa na sua profissão até ao dia em que você estará velho demais para ligar para isso. Isto será o natural - a vida que virá para você espontaneamente. Qualquer outro tipo de vida, se você a conduzir, resultará de um esforço consciente e contínuo. Se você não fizer nada em relação ao assunto, se você se deixar levar pela correnteza, provará ser, de fato, um caçador de "círculos fechados". Não digo que você terá sucesso, talvez tenha. Porém, seja se lamentando e sofrendo fora daqueles círculos em que você jamais entrará, ou passando triunfalmente cada vez mais para dentro deles - de uma forma ou de outra, você será esse tipo de gente.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

15 de dezembro de 2013

O IMPULSO SUTIL

|15 DE DEZEMBRO|

MUITAS vezes o desejo de fazer parte do círculo fechado se esconde tão bem que dificilmente somos capazes de reconhecer os prazeres da fruição. Os homens não contam apenas às suas esposas, mas também a si mesmos, o quanto é difícil trabalhar até tarde por causa de uma tarefa extra importante que somente eles saberiam fazer. Mas isso não é bem verdade. Trata-se de um terrível enfado... quando seu velho chefe te chama no canto e diz: "Você tem que participar disso de qualquer jeito" ou "Resolvemos que é você que tem que entrar nesse comitê". Ah, mas quão mais terrível é ser deixado de fora! É cansativo e pouco saudável perder as suas tardes de sábado, mas tê-las livres porque você não se importa é bem pior. 
Freud diria, sem dúvida, que tudo não passa de um subterfúgio do impulso sexual. Eu me pergunto se o sapato, algumas vezes, não está no outro pé. Eu me pergunto se, em tempos de promiscuidade, muita virgindade não foi perdida, menos em obediência a Vênus, do que em prol do movimento. É claro que, quando a promiscuidade está na moda, os castos são os que estão de fora. Eles são ignorantes em relação a alguma coisa que outras pessoas conhecem. Eles são os não-iniciados. E, quanto a assuntos mais leves, o número dos que começaram a fumar e dos que ficaram bêbados pela primeira vez por razões semelhantes provavelmente é bem grande.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

14 de dezembro de 2013

ESTAR DENTRO

|14 DE DEZEMBRO|

ACREDITO que, na vida de todas as pessoas em determinados períodos, e na vida de muitas pessoas em todos os períodos compreendidos entre a infância e a velhice, um dos elementos mais dominantes é o desejo de estar dentro do círculo local e o terror de ser deixado de fora. Esse desejo, em uma de suas formas, foi bastante justificado pela literatura. Quero dizer, na forma de esnobismo. A ficção vitoriana está cheia de personagens consumidos pelo desejo de entrar naquele círculo particular que é ou era chamado de sociedade. Porém, é preciso ficar claro que "sociedade", nesse caso, é simplesmente um entre centenas de círculos e o esnobismo, portanto, somente uma forma do desejo de estar do lado de dentro. As pessoas que acreditam ser livres - e de fato são - do esnobismo, e que leem sátiras sobre ele com tranquila superioridade, podem acabar sendo devoradas por outra forma de desejo. Pode ser que a própria intensidade do seu desejo de penetrar em algum círculo diferente as deixe imunes aos atrativos da alta sociedade. Um convite de alguma duquesa seria desconfortável para uma pessoa que sofre com o senso de exclusão de algum grupo artístico ou comunista. Pobre homem - não são as salas largas e iluminadas, o champagne ou mesmo os escândalos sobre colegas e chefes de gabinete que ele quer; é o pequeno sótão ou estúdio sagrado, as cabeças curvadas, a fumaça do cigarro e o delicioso conhecimento que nós - poucos, uns quatro ou cinco - somos aqueles que conhecem.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

13 de dezembro de 2013

DA VAIDADE AO ORGULHO

|13 DE DEZEMBRO|

Screwtape mostra a Wormwood como transformar a menor ofensa em um grande pecado

O SUCESSO nesse negócio está em confundi-lo. Se você tentar torná-lo orgulhoso de ser cristão, provavelmente fracassará; todas as advertências do Inimigo [Deus] são por demais conhecidas. Se, por outro lado, você o fizer deixar de lado a ideia de "nós cristãos" e simplesmente o tornar complacente quanto ao "seu grupo", não produzirá orgulho espiritual de verdade, e sim mera vaidade social que, comparativamente, é um pecado pequeno e inútil. O que você deve mesmo fazer é sustentar uma autogratificação disfarçada misturada a todos os pensamentos do seu paciente, sem nunca permitir que ninguém levante a questão: "Sobre o que, precisamente, estou orgulhoso, afinal?". A ideia de pertencer a um círculo fechado, de ser conhecedor de um segredo, é doce feito mel para ele. Bata nessa tecla. Ensine-o, usando a influência dessa garota quando ela afim de forma tola, a adotar uma posição de divertimento a respeito do que os não-crentes dizem. Algumas teorias que podem ser encontradas nos círculos cristãos modernos podem ser bastante úteis nesse ponto; quero dizer, teorias que ponham a esperança da sociedade em algum círculo fechado de "clérigos", alguma minoria de teocratas treinados. Não lhe importa saber se tais teorias são verdadeiras ou falsas; o segredo está em tornar o cristianismo uma religião de mistério, em que o paciente se sinda um dos iniciados.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

12 de dezembro de 2013

DE EXCLUÍDO PARA INCLUÍDO

|12 DE DEZEMBRO|

Screwtape dá instruções a Wormwood sobre como estimular um sentimento de direito

ESSA é a sua chance. Enquanto o Inimigo [Deus], por meio do amor sexual e de algumas pessoas bastante conformadas que já estão bem evoluídas no serviço que prestam, está levando o jovem bárbaro a níveis que ele jamais teria alcançado de outra forma, você tem de fazê-lo sentir que está alcançando o seu próprio nível - que certas pessoas do "seu tipo" e que, ao estar entre elas, ele está em casa. Quando ele for para outra sociedade, ele achará embotada; em parte porque qualquer sociedade ao seu alcance é, de fato, muito menos interessante, mas ainda mais porque ele sentirá falta do encantamento da jovem mulher. Você tem de ensiná-lo a confundir esse contraste entre o círculo de colegas que lhe agrada e o que o entedia, com o contraste entre cristãos e não-cristãos. Ele precisa ser levado a sentir (embora não o deseje traduzir em palavras) "como nós cristãos somos pessoas diferentes"; e por "nós cristãos", ele precisa querer dizer, mas sem se dar conta disso, "meu grupo"; e por "meu grupo" ele não deve querer dizer "as pessoas que na sua caridade e humildade me aceitaram", mas sim "as pessoas com as quais me associo por direito".

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

11 de dezembro de 2013

INDO AOS EXTREMOS

|11 DE DEZEMBRO|

Screwtape explica a utilidade do extremismo

EU NÃO esqueci a minha promessa de considerar se devemos tornar o paciente um patriota extremo ou um pacifista radical. Todos os extremos, exceto o da devoção ao Inimigo [Deus], devem ser encorajados. Nem sempre, mas nesse momento. Algumas épocas se mostram calmas e indiferentes, então o nosso negócio é embalá-los em um sono ainda mais profundo. Outras épocas, sendo a presente uma delas, mostram-se desequilibradas e propensas a facciosidade, e então nossa vantagem está em inflamá-la ainda mais. Qualquer grupo pequeno firmemente atado por um interesse em comum, que outras pessoas desgostam ou ignoram, tende a desenvolver dentro de si uma admiração mútua, e em relação ao mundo externo, um montante de orgulho e ódio que são recebidos sem qualquer vergonha, porque a "causa" é o seu patrocinador e as pessoas a consideram impessoal. Mesmo se o pequeno grupo existe originalmente para os propósitos do Inimigo [Deus], isso continuará sendo verdade. Queremos que a igreja continue pequena não apenas no sentido de que menos pessoas possam conhecer o Inimigo [Deus], mas também que aqueles que o conhecerem adquiram a intensidade inquietante e a justiça própria defensiva que caracterizam as sociedades secretas ou os partidos. A Igreja propriamente dita é, evidentemente, bastante protegida e nós jamais sucederemos em lhe atribuir todas as características de uma facção; mas facções subordinadas a ela já produziram resultados admiráveis, desde os partidos que se criaram em torno de Paulo e de Apolo em Corinto, até os das várias denominações em todo o mundo.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

10 de dezembro de 2013

MÚSICA DO DIA [10.12.2013]



Ele escolheu bem as que não são, pra te mostrar que você não é e que não precisa ser o que não precisa...

O HOMEM QUE CONFUNDIU OS MEIO COM OS FINS

|10 DE DEZEMBRO|

O professor conta uma história

- ERA UMA vez uma criatura que veio para cá há pouco tempo e voltou - eles o chamavam de Sir Archibald. Ele não se interessava por nada nesta vida terrena que não fosse a sobrevivência. Ele escreveu tantos livros que encheu uma estante inteira sobre o assunto. [...] Sua ocupação exclusiva passou a ser essa: fazer experimentos, dar palestras, editar uma revista. Ele viajava também: descobrindo histórias fantásticas entre os lamas do Tibete e sendo iniciado nas irmandades da África Central. Provas e mais provas, e depois disso mais outras provas: era tudo o que ele queria. [...] Bem, a pobre criatura morreu em boa hora e veio parar aqui: e não havia poder no universo capaz de impedi-lo de ficar e ir para as montanhas. Mas você acha que isso lhe fez algum bem? De jeito nenhum. Este país não tinha utilidade nenhuma para ele. Todos aqui já tinham "sobrevivido". Ninguém deu a mínima para a questão. Não havia nada para se provar. Sua profissão já não era necessária. É claro que, se ele tivesse admitido que havia errado, trocando os fins pelos meios, e tivesse rido de si mesmo, poderia ter começado tudo de novo como uma criança e encontrando a alegria. Mas ele não quis fazer isso. Ele não ligava nem um pouco para a alegria. No final, ele acabou indo embora.
- Que coisa fantástica! -  disse eu.
- Você acha mesmo? - perguntou o professor, com um olhar penetrante. [...] Já vi homens que se interessavam tanto em provar a existência de Deus, que acabaram se desinteressando por completo do próprio Deus... como se o bom Senhor não tivesse nada para fazer, além de existir! Já vi gente que andava tão ocupada em espalhar o cristianismo, que jamais dedicou um só pensamento a Cristo.

[C. S. Lewis]
- de The Great Divorce [O Grande Abismo]

9 de dezembro de 2013

MELHOR REINAR NO INFERNO

|9 DE DEZEMBRO|

O professor expõe a verdadeira natureza do pecado

- QUE ESCOLHA tem essas almas que voltam (ainda não vi outras)? E como podem fazer sua escolha?
- Milton estava certo - disse o meu professor. A escolha de cada alma perdida pode ser expressa nas palavras: "Melhor reinar no inferno do que servir no céu". Existe sempre algo que insistem em guardar, mesmo sob o preço do sofrimento. Existe sempre alguma coisa que ele preferem à alegria, isto é, à realidade. Pode-se observar isso facilmente em uma criança mimada que prefere perder a brincadeira e o jantar a dizer que sente muito e fazer as pazes. O nome que deram a esse estado de espírito é "mau humor", mas, na vida adulta, ele tem uma centena de nomes refinados - a ira de Aquiles, o orgulho de Coriolano, vingança, mérito e respeito próprio feridos, grandeza trágica e orgulho próprio.
- Então ninguém se perde devido a seus vícios indignos, senhor? Pela simples sensualidade?
- Certas pessoas sim, sem dúvida. O sensualista começa perseguindo um prazer real, por mais ínfimo que seja. Seu pecado é o menor. Porém, chega uma hora em que, embora o prazer diminua e o desejo cresça cada vez mais, embora ele saiba que a felicidade jamais poderá ser alcançada dessa forma, ainda assim ele prefere desfrutar da simples carícia da luxúria insaciável e não é capaz de admitir que isso lhe seja tirado. Ele lutaria até a morte para mantê-la. Ele também gostaria muito de poder se coçar, mas, mesmo se não pudesse mais, preferiria sentir uma comichão a nada.

[C. S. Lewis]
- de The Great Divorce [O Grande Abismo]

8 de dezembro de 2013

SEJA FEITA A SUA VONTADE

|8 DE DEZEMBRO|


O professor explica a nossa capacidade de escolha

"NO FIM das contas, só existem dois tipos de pessoas: as que dizem a Deus: 'Seja feita a tua vontade', e aquelas a quem Deus diz: 'A sua vontade seja feita'. Todos os que estão no inferno, escolheram estar. Sem essa possibilidade de escolha, não poderia haver inferno. Nenhuma alma que deseja séria e constantemente a felicidade poderá perdê-la. Os que a procuram, acham. Para os que batem à porta, ela está aberta".

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

7 de dezembro de 2013

ESCOLHA AGORA, E ESCOLHA CERTO

|7 DE DEZEMBRO|

POR QUE Deus está desembarcando de forma disfarçada neste mundo ocupado pelo inimigo e dando início a uma espécie de sociedade secreta para destruir o Diabo? Por que ele não invadiu à força? Será que ele não é forte o suficiente? Bem, os cristãos pensam que Deus acabará desembarcando à força, só não sabemos quando. Mas não é difícil adivinhar porque ele está demorando. Deus deseja nos dar a chance de ficar ao lado dele livremente. Suponho que não pensaríamos bem de um francês que esperasse até que os aliados estivessem marchando para o interior da Alemanha para só depois anunciar que estava do nosso lado. Deus acabará invadindo. Eu me pergunto se as pessoas que pedem que Deus intervenha aberta e diretamente em nosso mundo já se deram conta de como será quando ele assim o fizer. Quando isso acontecer, será o fim do mundo. Quando o autor caminha para o palco, a peça acabou. Deus acabará invadindo, sem dúvida; mas de que lhe valerá dizer que você está do lado de Deus ao ver todo o universo se derretendo como um sonho, e ver algo mais - algo que você jamais pode imaginar - vindo como um grande estrondo? Algo tão belo para uns e tão terrível para outros, que ninguém terá meios de escapar? Dessa vez estaremos diante de um Deus sem disfarces; algo tão impressionante que suscitará um amor irresistível ou o mais irresistível horror em cada criatura. Então, será tarde demais para escolher de que lado você está. Não há utilidade alguma em dizer que você optou por se deitar, quando não há possibilidade de você se levantar. Essa não será a hora de escolher; será a hora em que acabaremos descobrindo qual dos dois lado escolhemos de fato; não importa se havíamos nos dado conta disso antes ou não. É hoje que nos é dada a chance de escolher o lado certo. Deus está se contendo para poder nos dar essa chance. Mas não será para sempre. É pegar ou largar.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

6 de dezembro de 2013

FAÇA A SUA ESCOLHA

|6 DE DEZEMBRO|

NÃO CREIO que todos os que escolhem a estrada errada percebem; contudo, o resgate deles consiste em serem conduzidos de volta à estrada certa. Só podemos corrigir uma soma voltando àquele ponto em que erramos, e não, simplesmente, seguindo em frente. O mal pode ser desfeito, mas ele não pode se "desenvolver" em bem. O tempo não o pode curar. O feitiço tem de ser desfeito aos poucos, "com expressões de poder desagregador" - caso contrário não dá resultado. Continua sendo uma questão de escolha. Se insistirmos em conservar o inferno (ou mesmo a terra), não veremos mais o céu; se aceitarmos o céu, não nos será possível reter nem a menores e mais íntimas lembranças do inferno.

[C. S. Lewis]
- de The Great Divorce [O Grande Abismo]

5 de dezembro de 2013

VISUALIZANDO REFUGOS

|5 DE DEZEMBRO|

VOCÊ deve estar se lembrando de que em determinada parábola os salvos vão para um lugar preparado para eles, enquanto os perdidos vão para um lugar que nunca foi feito para nenhum ser humano (Mateus 25.34-41). Ir para o céu significa tornar-se mais humano do que você jamais foi na terra; ir para o inferno é o mesmo que ser banido da humanidade. O que é lançado (ou se lança) no inferno não são seres humanos: são "refugos". Ser um ser humano completo significa fazer as paixões obedecerem à vontade e oferecer essa vontade a Deus: ter sido um ser humano - ser um ex-homem ou um "fantasma perdido" - provavelmente significa possuir uma vontade completamente voltada para o eu e ter paixões completamente descontroladas pela vontade.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

4 de dezembro de 2013

VOCÊ É O JUIZ

|4 DE DEZEMBRO|

TENTEMOS ser honestos conosco mesmos. Imagine um homem que tenha ficado rico ou poderoso por meio de uma série de traições e crueldades explorando os sentimentos nobres de suas vítimas com fins puramente egoístas e rindo da ingenuidade delas; que, tendo alcançado o sucesso, faz uso dele para satisfazer a lascívia e o ódio, e finalmente perde o último vestígio de honra entre os malfeitores traindo seus parceiros e zombando de seus derradeiros momentos de desilusão desnorteada.
Suponhamos, ainda, que ele faça tudo isso, não atormentado (como gostaríamos de imaginar) pelo remorso ou pela apreensão, mas comendo como um adolescente e dormindo como uma criança saudável, mostrando-se um homem alegre, de bochechas coradas, sem nenhuma preocupação no mundo. Sempre confiante de que só ele encontrou a resposta para o enigma da vida, de que Deus e o homem são uns trouxas de quem ele se aproveitou muito bem, de que se modo de viver é totalmente satisfatório, bem-sucedido, inabalável. Temos de ser cuidadosos neste ponto. Se dermos espaço ao menor vestígio de paixão vingativa, estaremos cometendo um pecado mortal. A caridade cristã nos recomenda empreender todos os esforços para a conversão de alguém assim: preferir sua conversão, mesmo pondo em risco a nossa própria vida, quem sabe até a nossa própria alma, à sua punição; e preferir isso infinitamente. Mas não é esse ponto. Suponhamos que ele não queira se converter. Que destino eterno você consideraria adequado para ele? Será que você é realmente capaz de desejar que um indivíduo desse tipo, permanecendo do jeito que é (e deverá ter capacidade para tanto, se tiver livre-arbítrio), seja amparado para sempre pela felicidade presente - que ele devesse continuar, por toda eternidade, firmemente convencido de que é ele que dará a última gargalhada?

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

3 de dezembro de 2013

MÚSICA DO DIA [03.12.2013]




The Digital Age - Oh My God/I Am A Seed

Esta banda foi indicada pelo pastor Cleber Barros.

DETESTÁVEL DOUTRINA

|3 DE DEZEMBRO|

ALGUNS não serão redimidos. Não existe doutrina no cristianismo que eu mais adoraria ver extinta do que esta, se eu tivesse esse poder. Porém, ela tem o pleno apoio das Escrituras e, especialmente, das palavras do Nosso Senhor; ela sempre foi sustentada pela cristandade; e está fundada na razão. Sempre que entramos em um jogo, é preciso haver a possibilidade de perdê-lo. Se a felicidade de uma criatura se acha na autoentrega, ninguém será capaz de realizar essa entrega a não ser ela mesma (embora muitos possam contribuir para ela chegar lá) e ela pode até mesmo se recusar. Eu estaria disposto a pagar qualquer preço para poder dizer com sinceridade: "Todos estão salvos". Contudo, a minha razão replica: "Com ou sem o consentimento deles?". Se eu disser: "Sem o seu consentimento", imediatamente percebo a contradição; como pode o ato supremo e voluntário da autoentrega ser involuntário? E se eu disser: "Com seu consentimento", minha razão replica: "Como, se não quiserem ceder?".

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

2 de dezembro de 2013

DEIXADO SÓ

|2 DE DEZEMBRO|

A LONGO prazo, a resposta a todos os que apresentam objeções contra a doutrina do inferno é, em si mesma, uma pergunta: "O que você quer que Deus faça?". Apagar os pecados por eles cometidos no passado e dar-lhes uma nova chance, aliviando todas as dificuldades e oferecendo uma ajuda milagrosa? Deus já fez isso no Calvário. Perdoá-los? Eles não serão perdoados. Abandoná-los? Sim, temo que seja isso o que ele faz.
Só mais uma advertência para encerrar o assunto. Para se despertar as mentes modernas para os temas aqui tratados, ousei introduzir a figura de um homem mau a quem facilmente reconhecemos como mau. Porém, depois que essa figura tiver feito o seu serviço, é melhor que seja esquecida o quanto antes. Em todas as nossas discussões sobre o inferno, devemos manter firmemente diante dos olhos a possível condenação, não de nossos inimigos nem de nossos amigos (pois ambas só confundem a nossa razão), mas a nossa própria. Esse texto não fala da sua esposa nem do seu filho, nem de Nero ou de Judas Iscariotes; fala de você e de mim.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

1 de dezembro de 2013

AS PORTAS DO INFERNO

|1 DE DEZEMBRO|

OBJETA-SE que a perda última de uma única alma significaria a derrota da onipotência. E é isso mesmo. Ao criar seres com livre-arbítrio, a onipotência submeteu-se desde o começo à possibilidade de tal fracasso. Chamo de milagre o que você chama de derrota, porque fazer coisas que não são ele mesmo, tornando-se assim, num certo sentido, capaz de encontrar resistência por parte da obra de suas próprias mãos, é o mais surpreendente e inconcebível dos feitos que podemos atribuir à divindade. Estou disposto a acreditar que, de certa forma, os perdidos são rebeldes que sucederam até o fim; que as portas do inferno se encontram trancadas por dentro. Não quero dizer que os fantasmas não queiram sair do inferno da mesma forma imprecisa que uma pessoa invejosa "deseja" ser feliz: mas eles certamente não alcançarão sequer os estágios preliminares daquele autoabandono necessário para uma alma atingir qualquer bem. Eles gozam para sempre a horrível liberdade que haviam exigido, e são, portanto, escravos de si mesmos; da mesma maneira que os justos, que se submetem à obediência para sempre, tornam-se cada vez mais livres, por toda a eternidade.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]