31 de agosto de 2013

ASSIM COMO NÓS PERDOAMOS

|31 DE AGOSTO|

O MESMO acontece quando entra em jogo o nosso perdão em relação aos outros, embora seja um pouco diferente. É a mesma coisa porque, em ambos os casos, perdoar não é o mesmo que desculpar. Muitas pessoas aparentemente acham que é. Elas acham que, se tiverem que perdoar alguém que as trapaceou ou ameaçou, na verdade, estarão fazendo de conta que não houve trapaça ou ameaça alguma. Se fosse assim, não haveria nada a se perdoar. E continuam argumentando: "Mas você não está entendendo. Ele quebrou uma promessa das mais solenes". É isso mesmo; é exatamente esse tipo de coisa que você tem de aprender a perdoar. (Isso não quer dizer que você precisa necessariamente acreditar na próxima promessa dessa pessoa. Significa apenas que você deve empreender todos os esforços possíveis para eliminar qualquer ressentimento que possa carregar no coração - qualquer desejo de humilhar ou machucar o outro, ou de lhe dar o troco). Essa é a grande diferença quando você pede o perdão de Deus. No nosso caso, é muito mais fácil aceitarmos desculpas; no dos outros, não conseguimos aceitá-las com tanta facilidade.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

30 de agosto de 2013

DOIS REMÉDIOS PARA AS DESCULPAS

|30 DE AGOSTO|

HÁ DOIS remédios para esse perigo. Um deles é lembrar que Deus conhece todas as desculpas legítimas muito melhor do que nós. E se, de fato, existem "circunstâncias atenuantes", não precisamos ter medo de que elas passem despercebidas diante dele. Deus deve conhecer desculpas que nem sequer imaginamos. Portanto, depois da morte, as almas humildes terão a grata surpresa de saber que, em certas circunstâncias, elas pecaram muito menos do que estavam pensando. Todo o processo de perdão real é por conta dele. O que temos de apresentar diante de Deus é aquele restinho indesculpável, que se chama pecado. Ficar discutindo sobre todas aquelas partes que poderiam (supomos) ser desculpadas é perda de tempo. Quando você vai ao médico, você mostra as partes que estão com problemas - digamos, por exemplo, um braço quebrado. Seria perda de tempo ficar explicando que as suas pernas, olhos e garganta estão bem. Você pode até estar errado em sua suposição, mas, se eles realmente estiverem em ordem, o médico o saberá.
O segundo remédio é acreditar real e verdadeiramente no perdão dos pecados. Grande parte da nossa preocupação em dar desculpas vem de não conseguirmos realmente acreditar no perdão, de acharmos que Deus poderá nos rejeitar se não ficar satisfeito e que podemos tirar algum tipo de vantagem da situação em nosso favor. Mas isso não seria perdão. O perdão real significa olhar com firmeza para o pecado (o montante de pecado que restou sem qualquer desculpa), depois que todas as concessões fossem feitas, e encará-lo em todo o seu horror, sujeira, maldade e malícia, e, ainda sim, conseguir reconciliar-se totalmente com a pessoa que o praticou. É isso e somente isso que significa o perdão, e podemos obtê-lo de Deus sempre que lhe pedirmos.

[C. S. Lewis]
- de The Weight Of Glory [Peso de Glória]

29 de agosto de 2013

PERDÃO versus DESCULPAS

|29 DE AGOSTO|

TENHO a impressão de que quando acho que estou pedindo que Deus me perdoe estou muitas vezes (a menos que eu me cuide bastante)  pedindo que ele faça algo muito diferente. Não estou pedindo que me perdoe, mas que me desculpe. Porém, existe uma enorme diferença entre perdoar e desculpar. Perdoar significa dizer: "Sim, é verdade que você cometeu tal coisa, mas eu aceito seu pedido de perdão. Eu jamais o cobrarei de você, e tudo entre nós continuará sendo exatamente como antes". Porém, quando desculpamos alguém estamos dizendo: "Vejo que você não teve como evitá-lo ou não quis fazer isso, e não foi realmente sua culpa". Se não houve culpa real, não há nada a desculpar. Nesse sentido, a desculpa e o perdão são quase opostos. É claro que, em dezenas de casos, seja entre Deus e o homem, seja entre uma pessoa e outra, as coisas muitas vezes se sobrepõem. Parte do que parecia ser pecado à primeira vista, revela-se como não sendo culpa de ninguém e é desculpado; o restinho que sobra é perdoado. [...] Contudo, o que muitas vezes chamamos de "pedir perdão a Deus" não passa, na verdade, de pedir que ele aceite nossas desculpas. O que nos induz a esse erro é o fato de que normalmente existe certo arsenal de desculpas, ou seja, de "circunstâncias atenuantes". Ficamos tão ansiosos em apresentá-las diante de Deus (e de nós mesmos) que somos capazes de esquecer a coisa mais importante, isto é, o que restou: o montante que as desculpas não são capazes de cobrir, o restinho que é indesculpável, mas, graças a Deus, não é imperdoável. Quando nos esquecemos disso, vamos embora achando que nos arrependemos e fomos perdoados, quando, na verdade, tudo que fizemos foi dar satisfações a nós mesmos com as nossas próprias desculpas. É possível até que sejam desculpas bem esfarrapadas; ficamos facilmente satisfeitos com nós mesmos.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

28 de agosto de 2013

EU CREIO NO PERDÃO DOS PECADOS

|28 DE AGOSTO|

FALAMOS muita coisa na igreja (e também fora dela) sem pensa no que estamos falando. Por exemplo, dizemos no credo: "Eu creio no perdão dos pecados". Fiquei repetindo isso por muitos anos antes de me perguntar por que isso estava no credo. À primeira vista, parece difícil valer a pena explicar. "Quando alguém é cristão", pensei comigo, "é claro que acredita no perdão dos pecados. É uma evidência gritante". Porém, parece que quem escreveu e compilou os credos achou que essa era uma parte da nossa crença que precisávamos lembrar toda vez que fôssemos à igreja. Depois que me dei conta disso, se me perguntassem hoje, eu diria que eles estavam certos. Acreditar no perdão dos pecados não é tão simples quanto eu pensava. A crença real nesse tipo de coisa facilmente nos escapa se não tivermos a disciplina de continuar alimentando-a.
Acreditamos que Deus perdoa nossos pecados, mas também que ele não o fará a menos que nós perdoemos os pecados que as outras pessoas cometem contra nós. Não há dúvida sobre a segunda parte dessa declaração. Está escrito no Pai-Nosso e foi fortemente enfatizado pelo nosso Senhor. Se você não perdoar, não será perdoado. Não há parte mais clara no ensinamento de Jesus, e ela não dá margem a exceções. Deus não diz que devemos perdoar os pecados dos outros se eles não forem assustadores ou desde que existam circunstâncias atenuantes ou algo desse tipo. Devemos perdoá-los todos, não importa o quanto eles sejam malignos, miseráveis e frequentes. Se não o fizermos, também não seremos perdoados de nenhum dos nossos.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

27 de agosto de 2013

"TUDO O QUE EU DISSE..."

|27 DE AGOSTO|

Último conselho de Screwtape sobre como usar aborrecimentos diários para distrair o paciente

NA VIDA doméstica civilizada o ódio geralmente se expressa por coisas ditas que pareceriam totalmente inofensivas no papel (as palavras não são ofensivas), mas, com certo tom de voz e na hora certa, não ficam muito longe de um tapa na cara. Para manter esse jogo bem quente, você e Glubose devem cuidar para que os dois tolos estejam sempre usando dois pesos e duas medidas. Seu paciente deve fazer questão de que todo o seu discurso seja entendido exatamente como é proferido e julgado no sentido meramente literal, ao mesmo tempo que ele se dá ao direito de julgar todos os discursos da sua mãe  com a mais completa e suprassensível interpretação do tom de voz, do contexto e da intenção pretendida. E faça com que ela aja da mesma maneira. Assim, ambos poderão sair de toda essa briga convencidos, ou bem perto de estarem convencidos, de que são inocentes. Você conhece esse tipo de coisa: "É só eu perguntar a que horas é o jantar que ela já tem um chilique". Uma vez consolidado esse hábito, você terá a sensação prazerosa de ver uma pessoa dizer coisas com o propósito expresso de ofender, e mesmo assim, se magoando quando a ofensa é aceita.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

26 de agosto de 2013

DEBAIXO DO MESMO TETO

|26 DE AGOSTO|

Screwtape oferece mais conselhos sobre o valor dos aborrecimentos diários para armar ciladas contra um paciente

QUANDO duas pessoas vivem juntas debaixo do mesmo teto por algum tempo, ocorre geralmente alguns tons de voz e expressões faciais de uma delas são irritantes demais para a outra. Explore bem esse ponto. Faça com que o seu paciente se conscientize totalmente dessa típica levantadinha de sobrancelhas da sua mãe, a qual ele aprendeu a se irritar desde a infância, e faça com que ele fique refletindo sobre o quanto detesta isso. Faça com que ele parta do pressuposto de que ela sabe o quanto isso o aborrece e que ela faz de propósito - se você souber fazer bem o seu trabalho, ele não vai nem notar que essa suposição não tem chance alguma de ser verdadeira. E é claro que você jamais deve deixá-lo suspeitar dos seus próprios tons e olhares que a irritam da mesma forma. Já que ele é incapaz de ver e ouvir a si mesmo, isso é muito fácil de gerenciar.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

25 de agosto de 2013

ABORRECIMENTOS NOSSOS DE CADA DIA

|25 DE AGOSTO|

Mais conselhos de Screwtape sobre o melhor uso dos aborrecimentos diários para enredar um paciente

É, SEM DÚVIDA, impossível impedir que seu paciente ore pela mãe dele, mas temos meio para tornar essas orações inócuas. Garanta que todas elas sejam sempre muito "espirituais", de forma que ele esteja sempre preocupado com o estado da alma dela e nunca com o seu reumatismo. Há duas vantagens nisso. Em primeiro lugar, conseguimos manter a sua atenção concentrada no que ele chama de "pecados" dela, termo que, com um empurrãozinho seu, poderá ser usado por ele para se referir a todos aqueles comportamentos de sua mãe que lhe sejam inconvenientes ou irritantes. Isso permitirá que você mantenha as feridas de cada dia abertas e doloridas, até mesmo quando ele se colocar de joelhos para orar. Você verá que essa manobra não é nada difícil e até a achará bastante divertida. Em segundo lugar, já que as ideias de seu paciente sobre a alma não devem ser muito sofisticadas, e muitas vezes equivocadas, é bem provável que ele esteja orando por uma pessoa imaginária. Então, sua tarefa resume-se em fazer esse ser imaginário tornar-se cada vez menos parecido com a sua mãe real - aquela velha de língua afiada sentada à mesa do café da manhã. Com o tempo, você acabará criando um abismo tão grande entre eles, que nenhum pensamento ou sentimento proveniente das suas orações pela mãe imaginada será capaz de influenciar a forma como ele trata a sua mãe verdadeira. Eu mesmo já tive paciente tão sob meu controle que eu era capaz de, num passe de mágica, transformar suas orações apaixonadas pela alma de uma esposa ou de um filho em espancamento ou insulto à esposa ou filho real, sem o menor escrúpulo.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

24 de agosto de 2013

O "SABE-TUDO"

|24 DE AGOSTO|

Screwtape acrescenta mais um detalhe sobre a glutonaria

AGORA, o seu paciente é o filhinho da mamãe. Sei que você está trabalhando duro em outras frentes e com toda a razão. Porém, você não deve negligenciar uma pequena e discreta investida no campo da glutonaria. Sendo um paciente do gênero masculino, ele não cairá tão facilmente na onda do "só o que eu queria...". É mais fácil fazer os homens caírem na glutonaria apelando para a sua vaidade. Precisamos fazê-los achar que sabem tudo sobre todo o tipo de comida, gabando-se por terem descoberto o melhor restaurante da cidade, onde as carnes são preparadas da forma mais "adequada" possível. E o que começa como caridade, pode gradualmente virar um hábito. Porém, independente de como você o faça, o grande segredo é fazê-lo ficar num estado em que a negação de qualquer vício - não importa qual: cerveja, café ou cigarros - o "tire do sério", pois, com isso, você terá sob controle toda sua caridade, justiça e obediência.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

23 de agosto de 2013

MÚSICA DO DIA [23.08.2013]

PERFIL DE UM GLUTÃO: "SÓ O QUE EU QUERIA..."

|23 DE AGOSTO|

Screwtape continua a traçar o perfil de um glutão em ação

O VERDADEIRO valor do trabalho silencioso e discreto que Glubose tem realizado há anos nessa velha senhora pode ser medido pela forma como seu estômago agora domina toda a sua vida. Essa mulher está em um estado mental que poderíamos chama de "Só o que eu queria...".  o que ela queria era uma boa xícara de café, ou um ovo frito com a gema do jeito que ela gosta, ou uma fatia de pão bem torrado, sem passar do ponto. O problema é que ela nunca acha um empregado ou amigo capaz de fazer as coisas do jeito dela - pois o que ela entende por "bom" oculta uma busca insaciável por prazeres palatais requintados e quase inalcançáveis, os quais ela imagina serem lembranças que lhe ficaram no passado; passado que ela descreve como os dos dias quando "se podia contar com bons empregados", mas conhecido por nós como os dias em que seus sentidos podiam ser mais facilmente satisfeitos e ela buscava prazeres de outra espécie, capazes de torná-la menos dependente dos prazeres da mesa. Nesse meio tempo, a frustração diária gera o mau humor diário: os cozinheiros divulgam o fato e as amizades se esfriam. Caso o Inimigo [Deus] pudesse infiltrar em sua mente numa leve desconfiança de que ela está interessada demais em comida, Glubose se apressaria em sugerir que ela não liga nem um pouco para o que tem para comer, e que só o que lhe interessa é oferecer "coisas boas para o seu filho". Na verdade, a ganância dela tem sido há anos uma das principais fontes do desconforto doméstico do filho.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

22 de agosto de 2013

PERFIL DE UM GLUTÃO: O SORRISINHO DISCRETO

|22 DE AGOSTO|

Screwtape traça o perfil de um glutão em ação


GLUBOSE tem a velha senhora nas mãos. Ela é um verdadeiro terror, tanto para os chefes de cozinha quanto para os garçons. Ela está sempre reagindo ao que lhe é oferecido com um olharzinho discreto e um sorriso: "Ó, por favor... tudo o que é quero é uma xícara de chá fraco, mas não fraco demais, e o pedaço de torrada mais fino, menorzinho, e mais crocante que tiver". Percebe? Pelo fato de que o que ela quer é menor e menos custoso do que lhe foi apresentado, ela jamais reconhece como glutonaria sua determinação de obter aquilo que quer, não importa quanto trabalho isso possa dar aos outros. No momento em que ela cede ao seu apetite, acha que está praticando a temperança. Em um restaurante lotado ela solta um gritinho diante do prato que lhe foi posto por alguma garçonete sobrecarregada de trabalho e exclama: "Ó, isso é demais para mim! Leve daqui e me traga um quarto disso". Se lhe perguntarem sobre a sua atitude, ela dirá que está fazendo isso para evitar desperdícios; na realidade, ela o faz porque o tipo de delicadeza na qual a escravizamos se ofende toda vez que vê mais comida do que ela pode querer.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

21 de agosto de 2013

A GLUTONARIA DA DELICADEZA

|21 DE AGOSTO|

Screwtape demonstra as vantagens da glutonaria

O JEITO insolente como você falou em glutonaria em sua última carta, como um meio de capturar almas, só mostra mesmo a sua ignorância. Uma das grandes conquistas dos últimos cem anos foi amortecer a consciência humana sobre o assunto, de modo que, a essa altura, você dificilmente encontrará um sermão pregado ou uma consciência atribulada com a glutonaria em toda a Europa. Isso tem sido amplamente alcançado ao concentrarmos todos os nossos esforços na glutonaria da delicadeza, não na do excesso. A mãe do seu paciente, como eu posso ver pelo dossiê dela e como Glubose deve ter lhe dito, é um ótimo exemplo. Ela ficaria espantada - e espero que um dia fique mesmo - de saber que a sua vida toda está escravizada a esse tipo de sensualidade, que lhe é bem pouco consciente, já que as quantidade envolvidas são reduzidas. Porém, a quantidade não importa, desde que possamos usar a barriga e o paladar do ser humano para produzir mau humor, impaciência, falta de caridade e interesse próprio.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

20 de agosto de 2013

UMA ÚLTIMA RAZÃO POR QUE NÃO DESEJAMOS A CASTIDADE

|20 DE AGOSTO|

AS PESSOAS muitas vezes compreendem mal o que a psicologia ensina sobre a "repressão". Ela nos ensina que o sexo "reprimido" pode se tornar perigoso. Porém, a palavra "reprimido" é usada aqui como um termo técnico; ele não significa "suprimindo", no sentido de "negado" ou "recusado". Um desejo ou pensamento reprimido é o que foi lançado no subconsciente (geralmente na infância) e que agora se apresenta à mente apenas de forma disfarçada e irreconhecível. A sexualidade reprimida não parece ao paciente sequer uma sexualidade. Quando um adolescente ou adulto está empenhado em resistir a um desejo consciente, ele não está lidando com uma repressão, nem correndo o menor perigo de criar uma repressão. Pelo contrário, os que tentam seriamente ser castos são mais conscientes, e logo conhecerão muito mais da sua própria sexualidade do que qualquer outra pessoa. Eles passam a conhecer seus desejos, da mesma forma que Wellington conhecia Napoleão, ou Sherlock Holmes conhecia Moriarty; da mesma forma que um caçador de ratos conhece ratos, ou que um encanador entende de encanamentos. A virtude - mesmo aquela só pretendida - traz luz; o vício gera nevoeiros.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

19 de agosto de 2013

OUTRA RAZÃO POR QUE NÃO DESEJARMOS A CASTIDADE

|19 DE AGOSTO|

MUITAS pessoas desanimam diante de todas as tentativas sérias de experimentar a castidade cristã, porque acham (antes mesmo de tentar) que ela é impossível. Porém, quando algo deve ser realizado, ninguém jamais deve pensar em termos de possibilidades e impossibilidades. Diante de uma questão opcional formulada em uma prova, costumamos levar em conta se estamos em condições de realizá-la ou não: diante de uma questão compulsória, temos de fazer o melhor que pudermos. Você poderá obter alguns pontos por uma resposta imperfeita: certamente não ganhará nada se deixar a questão em branco. Isso não vale apenas para exames, mas também para a guerra, para a escalada de montanhas, para as lições de skate, de natação ou de bicicleta; e até na hora de prender um colar apertado com os dedos gelados, as pessoas geralmente fazem coisas que lhes pareciam quase impossíveis antes de tentar. É maravilhoso ver o que você é capaz de fazer quando é obrigado a fazê-lo.
Podemos, de fato, ter certeza de que a castidade perfeita - da mesma forma que a caridade perfeita - jamais será alcançada por um simples esforço humano. Você tem de pedir ajuda de Deus. Mesmo ao fazê-lo, pode parecer que não houve ajuda nenhuma ou que você recebeu menos ajuda do que estava precisando. Não importa. Peça perdão depois de cada falha, levante-se e tente de novo. Muito frequentemente, o que Deus nos ajuda a conquistar primeiro não é a virtude em si, mas somente a capacidade de sempre tentar de novo. Pois, não importa quão importante possa ser a castidade (ou a coragem, ou a veracidade, ou qualquer outra virtude), esse processo nos ajuda a treinar os hábitos da alma, que são os mais importantes. Ele cura as nossas ilusões sobre nós mesmos e nos ensina a depender de Deus. Por outro lado, aprendemos que não podemos confiar em nós mesmos nem em nossos melhores momentos, e que também não precisamos nos desesperar, mesmo na pior das situações, já que as nossas falhas estão perdoadas. A única atitude fatal seria sentar-se comodamente, contentando-se com qualquer coisa menos que a perfeição.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

18 de agosto de 2013

UMA RAZÃO PARA NÃO DESEJARMOS A CASTIDADE

|18 DE AGOSTO|

NOSSAS naturezas distorcidas, os demônios que nos tentam, e toda a propaganda contemporânea do prazer conspiram para nos fazer sentir como se os desejos aos quais estamos resistindo fossem tão "naturais", tão "saudáveis" e tão razoáveis que seria quase perverso e anormal resistir a eles. Cartazes e mais cartazes, filmes e mais filmes, novelas e mais novelas, associam a ideia da satisfação dos desejos às ideias de saúde, normalidade, juventude, franqueza e bom humor. Na realidade, essa associação não passa de uma grande mentira. Como todas as mentiras poderosas, essa é baseada na verdade, reconhecida anteriormente, de que o sexo em si (com exceção dos abusos e obsessões que o cercam) é algo "normal" e "saudável". A mentira está na sugestão de que qualquer ato sexual ao qual possamos ser tentados a qualquer momento também é saudável e normal. Ora, isso é uma bobagem, sob qualquer ponto de vista, mesmo fora do cristianismo. A entrega a todos os desejos obviamente leva a impotência, doença, inveja, mentira, disfarce e a tudo que é oposto a saúde, ao bom humor e a franqueza.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

17 de agosto de 2013

APETITES DEPRAVADOS

|17 DE AGOSTO|

A CASTIDADE é a menos popular de todas as virtudes cristãs. Não há como escapar dela; a regra cristã é: "Ou o casamento, com total fidelidade ao cônjuge, ou a abstinência total". Isso é tão difícil e contrário aos nossos instintos que, obviamente, ou o cristianismo está errado, ou o nosso instinto sexual, como é hoje, está errado. Ou um coisa, ou outra. É claro que, como cristão, acredito que é o instinto que está errado.
Porém, tenho outras razões para pensar assim. O propósito biológico do sexo é gerar filhos, da mesma forma que o propósito biológico de comer é alimentar o corpo. Agora, se comermos quando bem entendemos, é quase certo que acabaremos comendo demais. Mas não além dos limites. Uma pessoa pode até comer por duas, porém, não será capaz de comer por dez. O apetite pode até extrapolar um pouco seu propósito biológico, mas não extraordinariamente. Se um jovem saudável resolvesse satisfazer o seu apetite sexual sempre que quisesse, e se todo ato sexual gerasse um bebê, então, em dez anos, ele seria facilmente capaz de povoar um vilarejo. Um apetite desses iria muito além de sua função, de forma ridícula e ilógica.
Ou veja de outra forma. Imagine uma grande plateia reunida para ver um strip-tease, isto é, uma mulher despindo-se em um palco. Agora, suponha que você chegasse a uma vila onde seria possível encher um teatro apenas trazendo para o palco um prato coberto e levantando o pano bem devagar, deixando todo mundo ver, pouco antes do apagar das luzes, que ele contém um bom pedaço de carne de carneiro ou bacon. Será que você não pensaria que naquele lugar há algo errado com o apetite por comida? E um ser que tivesse sido criado em mundo diferente do nosso não acharia algo igualmente estranho está acontecendo em relação ao instinto sexual entre nós?

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

16 de agosto de 2013

O MENOS GRAVE DE TODOS OS PECADOS

|16 DE AGOSTO|

SE ALGUÉM  acha que os cristãos veem a falta de castidade como o vício supremo, está completamente enganado. Os pecados da carne são ruins, mas eles são os menos graves. Os piores prazeres são puramente espirituais; prazer de fazer as pessoas errarem, de dominar, de mandar, de acabar com a alegria dos outros, de difamar; os prazeres do poder e do ódio. Há duas coisas dentro de mim que concorrem com o ser humano que eu devo tentar ser. Trata-se do animal e do diabólico. O lado diabólico é o pior dos dois. Eis porque uma pessoa pretensiosa, fria e moralista que frequenta a igreja com regularidade pode estar muito mais perto do inferno do que uma prostituta. Mas é claro que é melhor não ser nenhum dos dois.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

15 de agosto de 2013

A FIM DE QUE O AMOR ENCONTRE UMA BASE

|15 DE AGOSTO|

Screwtape defende a impossibilidade do amor

ELE [o Inimigo, Deus] visa uma contradição. As coisas devem ser múltiplas, ainda que, de alguma forma, sejam uma só. O bem de alguém deve ser o bem de outro. Ele chama essa impossibilidade de amor, e essa mesma panaceia tediosa pode ser detectada em tudo que ele faz e, até mesmo, em tudo o que ele é - ou reivindica ser. Portanto, o Inimigo [Deus] não se contenta em ser, nem ele mesmo, uma simples unidade aritmética; ele declara ser um, e ao mesmo tempo, três, a fim de que essa bobagem sobre amor encontre fundamento em sua própria natureza. Assim, ele introduz aquela invenção obscena que é o organismo, em que as parte são pervertidas do seu destino natural de competição e postas em cooperação. 
O real motivo de o Inimigo [Deus] escolher o sexo como o método de reprodução entre os seres humanos é óbvio demais para o uso que ele lhe deu. O sexo poderia ter se tornado algo bastante inocente do nosso ponto de vista. Poderia ter se tornado mais uma forma de uma personalidade mais forte fazer uma mais fraca de presa - como acontece entre as aranhas: a noiva conclui as núpcias devorando o noivo. Porém, no caso dos seres humanos, o Inimigo [Deus] gratuitamente associou a afeição entre as partes ao desejo sexual. Ele também fez os descendentes dependerem dos pais e deu aos pais a força para apoiá-los - produzindo assim a família, que é como um organismo, só que bem pior; porque os seus membros são mais distintos, ainda que unidos de forma mais consciente e responsável. Tudo isso, com efeito, constitui-se simplesmente em mais uma menção para introduzir o amor.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

14 de agosto de 2013

AMAR E DEPOIS CASAR OU CASAR E DEPOIS AMAR?

|14 DE AGOSTO|

Screwtape revela detalhes das mentiras do inferno sobre o casamento

EM OUTRAS palavras, os seres humanos devem ser encorajados a achar que a base do casamento é uma versão colorida e distorcida de algo que o Inimigo [Deus] na verdade lhes promete como o seu resultado. Isso tem duas vantagens. Em primeiro lugar impede que aqueles seres humanos que não tem o dom de continência vejam o casamento como solução, já que não estão "apaixonados" e que, graças a nós, a ideia de casar por qualquer outro motivo lhes parece fraca e cínica. É isso mesmo que eles pensam. Eles consideram a intenção de fidelidade a uma parceria para ajuda mútua, para a preservação da castidade e para a transmissão da vida, como algo mais inferior do que uma tempestade  de emoções ( não descarte a possibilidade de fazer o seu paciente achar a cerimônia do casamento algo deveras ofensivo). Em segundo lugar, qualquer atração sexual, desde que tenha a intenção de casamento, será considerada "amor" e o "amor" será usado para toda culpa, e para protegê-los de todas as consequências de se casar com uma pessoa pagã, tola ou libertina.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

13 de agosto de 2013

NOVELAS ROMÂNTICAS

|13 DE AGOSTO|

AS PESSOAS tiram dos livros a ideia de que, se casarem com a pessoa certa, continuarão "apaixonadas" a vida toda. O resultado é que, quando acham que não estão mais apaixonadas, concluem que cometeram um erro e podem mudar - sem perceber que, quando mudarem, o glamour do novo amor acabará se perdendo da mesma forma que desapareceu do antigo. Nessa área da vida, como em qualquer outra, a emoção vem no começo e não perdura. A emoção que um garoto sente com a ideia de voa pela primeira vez não durará quando ele já estiver na Força Aérea aprendendo a voar. O encanto que sentimos quando vemos um lugar bonito pela primeira vez esmorece quando passamos a morar lá.
Outra ideia que tiramos das novelas e do cinema é que "apaixonar-se" é algo irresistível; algo que a gente simplesmente "pega" como sarampo. E, por acreditarem nisso, muitas pessoas casadas logo desistem quando se veem atraídas por um novo parceiro. Porém, estou inclinado a acreditar que essas paixões irresistíveis são mais raras na vida real do que nos livros, pelo menos quando se é adulto. Quando encontramos uma pessoa bonita, inteligente e simpática, é claro que, em certo sentido, amamos, admiramos e louvamos essas qualidades. Mas, será que não é uma questão de escolha deixar esse amor virar ou não o que chamamos de "estar apaixonado"? Não há dúvida de que, se a nossa mente estiver cheia de novelas, peças e músicas sentimentais, e o nosso corpo saturado de álcool, acabaremos achando que todo tipo de amor que sentimos é aquele; da mesma forma que, se houver uma vala em seu caminho, toda a água da chuva correrá por essa vala, e se você usar óculos com lentes azuis, verá tudo azul. No entanto, será tudo culpa sua.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

12 de agosto de 2013

CONTINUAR APAIXONADO

|12 DE AGOSTO|

SE A VELHA fórmula dos contos de fada "e viveram felizes para sempre" for entendida como "e nos cinquenta anos seguintes eles se sentiram exatamente da mesma forma como se sentiram um dia antes do casamento", então ela está dizendo algo que provavelmente nunca foi e nunca será verdade, e que, inclusive, seria altamente indesejável se o fosse. Quem suportaria viver nessa excitação toda por cinco anos? O que seria do seu trabalho, do seu apetite, do seu sono, das suas amizades? Mas, é claro, deixar de "estar apaixonado" não significa necessariamente deixar de amar. O amor, nesse segundo sentido - o amor como algo diferente de "estar apaixonado" - não é um simples sentimento. Trata-se de uma unidade profunda, alimentada pela vontade e deliberadamente fortalecida pelo hábito; reforçada (nos casamentos cristãos) pela graça que ambos os parceiros pedem e recebem de Deus. Os cônjuges podem alimentar esse tipo de amor um pelo outro mesmo naqueles momentos em que não se gostam; assim como você se ama, mesmo quando não gosta de si. Eles são capazes de manter esse amor, mesmo considerando que qualquer um deles pode facilmente se "apaixonar" por outra pessoa. Primeiro, o "estar apaixonado" os levou a jurar fidelidade; esse outro amor mais calmo os capacita a cumprir a promessa. É esse amor que mantém a máquina do casamento ativa; o estar apaixonado foi a ignição que lhe deu partida.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

11 de agosto de 2013

ESTAR APAIXONADO

|11 DE AGOSTO|

O QUE chamamos de "estar apaixonado" é um estado glorioso e que em diversos sentidos é muito bom para nós. Ele nos torna mais generosos e corajosos e abre os olhos não apenas para a beleza da amada, mas também para todo tipo de beleza. Ele subordina nossa sexualidade meramente animal (principalmente no começo); nesse sentido, o amor é o grande conquistador da luxúria. Ninguém em sã consciência negaria que estar apaixonado é bem melhor do que a sensualidade comum, ou o frio egocentrismo. Porém, como eu disse anteriormente, "a coisa mais perigosa que se pode fazer é considerar um instinto qualquer da nossa própria natureza como algo que você tivesse que perseguir a todo custo". Estar apaixonado é uma coisa boa, embora não seja a melhor de todas. Há muitas coisas inferiores, mas também existem coisas superiores. Você não pode tornar isso a base de toda uma vida. Trata-se de um sentimento nobre, mas que não deixa de ser só um sentimento. E não se pode esperar que um sentimento dure para sempre com toda a sua intensidade, nem mesmo que dure. Conhecimentos, princípios e hábitos podem durar; porém, os sentimentos vão e vem. E, com certeza, não importa o que as pessoas digam, o fato é que a condição que chamamos de "estar apaixonado" não costuma durar muito tempo.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

10 de agosto de 2013

EU PROMETO

|10 DE AGOSTO|

A IDEIA de que "estar apaixonado" é a única razão para se continuar casado realmente não deixa espaço para o casamento ser visto como um contrato ou uma promessa. Se o amor é tudo que há, então a promessa não terá mais nada a acrescentar; e se ela não acrescenta nada, então nem deveria ser feita. O mais curioso é que o próprio casal que se ama, enquanto está realmente apaixonado, sabe disso melhor do que os que ficam falando de amor. Chesterton dizia que quem está apaixonado tem uma propensão natural em se envolver em promessas. Todas as canções de amor por todo o mundo são cheias de juras de fidelidade eterna. A lei cristã não impõe nada à paixão amorosa que seja estranho à própria natureza dessa paixão; só o que se exige é que os amantes levem a sério algo que a paixão os leva a fazer.
E é claro, a promessa que fiz quando estava apaixonado, e porque estava apaixonado, de ser sincero com o outro enquanto eu viver, faz com que eu seja sincero mesmo que eu não esteja mais apaixonado. Uma promessa deve referir-se a coisas que eu possa fazer, a tomadas de ação; ninguém pode prometer ter o mesmo sentimento por toda a vida. Da mesma forma como também não se pode prometer não ter dor de cabeça ou sempre sentir fome.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

9 de agosto de 2013

UMA SÓ CARNE

|9 DE AGOSTO|

Screwtape desconstrói a história do casamento

AGORA é que vem o mais engraçado. O Inimigo [Deus] referiu-se a um casal como "uma só carne". Ele não estava se referindo a "um casal que vive a felicidade no casamento" ou a "um casal que se casou porque estava apaixonado". Porém, você pode muito bem fazer os seres humanos ignorarem isso. Você pode também fazê-los esquecer que o homem que eles chamam de Paulo não limitou isso a casais casados. A simples copulação, para ele, já os tornavam "uma só carne". Assim, você pode fazer os humanos entenderem como elogios retóricos ao fato de "estar apaixonado" o que seriam, de fato, claras descrições do real significado da relação sexual. A verdade é que, sempre que um homem se deita com uma mulher, quer eles se gostem ou não, esse ato estabelecerá uma relação transcendente permanente entre eles, a qual será eternamente desfrutada ou eternamente suportada. A partir da afirmação verdadeira de que essa relação transcendente foi planejada para produzir e, se seguida de forma obediente, geralmente produzirá afeição e a constituição de uma família, os seres humanos podem ser levados a inferir que a crença falsa de que a mistura de afeição, medo e desejo, a qual eles chamam de "estar apaixonado", é a única coisa capaz de fazer um casamento feliz e santo. É fácil induzi-los a esse erro, já que na Europa Ocidental o "estar apaixonado", na maioria da vezes, precede os casamentos realizados em obediência aos desígnios do Inimigo [Deus], isto é, com a intenção de fidelidade, constituição de família e boa vontade; da mesma forma que as emoções religiosas muitas vezes, ainda que nem sempre, estão presentes no processo de conversão.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

8 de agosto de 2013

A PARÓDIA DO INFERNO

|8 DE AGOSTO|

Screwtape revela as intenções do inferno para o casamento

AS EXIGÊNCIAS do Inimigo [Deus] sobre os seres humanos tomam a forma de um dilema; ou se submetem à abstinência total ou à monogamia insaciável. Desde a primeira grande vitória do Nosso Pai [Diabo], nós demos um jeito para que a primeira alternativa fosse difícil demais para eles. A segunda, nos últimos séculos, temos transformado em uma rota de fuga. Para isso usamos os poetas e romancistas, convencendo os seres humanos de que a experiência curiosa e geralmente passageira, que eles chamam de "estar apaixonado", é a única razão respeitável para o casamento; que o casamento pode, e deve, se manter nesse estado de excitamento permanente e que, se não for assim, ele não precisa ser mais mantido. Essa ideia é a nossa paródia da ideia originária do Inimigo [Deus].
Toda a filosofia do Inferno baseia-se no reconhecimento da suposição de que uma coisa não é outra coisa, e, especialmente, que um não é outro eu. O que tenho de bom é meu e o que você tem de bom é seu. O que um ganha, o outro tem de perder. Até mesmo um objeto inanimado é o que é por exclusão de todos os outros objetivos do espaço que ocupa; se ele se expande, isso acontece pela expulsão dos demais objetos que estão ao seu lado ou então plea absorção deles. O "eu" age do mesmo jeito. No caso do mudo animal, essa absorção assume a forma de uma cadeia alimentar; para nós, ela significa a absorção da vontade e da liberdade de um "eu" mais fraco para dentro de um "eu" mais forte. "Ser" significa "estar em competição".

[C. S. Lewis]
- de The Srewtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

7 de agosto de 2013

SANTAS INTENÇÕES

|7 DE AGOSTO|

A IDEIA cristã do casamento baseia-se nas palavras de Cristo de que um homem e sua esposa devem ser considerados um único organismo - pois é isso que a expressão "uma só carne" significa. E os cristãos acreditam que, quando Deus disse isso, não estava expressando nenhum sentimento, mas constatando um fato - da mesma forma como uma pessoa constata um fato quando diz que a fechadura e a chave formam um só mecanismo, ou que um violino e o seu arco são um só instrumento musical. O inventor da máquina humana estava querendo nos dizer que as duas metades, a masculina e a feminina, foram feitas para combinarem não simplesmente no nível sexual, mas totalmente. A monstruosidade do relacionamento sexual fora do casamento está em que os que cedem ao desejo estão, com isso, tentando isolar um tipo de união (a sexual) de todos os outros tipos que foram pensados para acompanhá-la e completar a união total. A atitude cristã não significa que haja alguma coisa errada quanto ao prazer sexual, assim como não há no prazer de comer. Significa que você não deve buscar os prazeres do paladar, mastigando os alimentos e vomitando-os, sem engolir e digerir.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

6 de agosto de 2013

ALIMENTANDO NOSSA INFELICIDADE

|6 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da esposa, Joy

CONTINUA não havendo dúvida de que, em certo sentido, eu me "sinto melhor", e isso vem instantaneamente acompanhado de certa vergonha e de um sentimento de que há um tipo de obrigação de cultivar, fomentar e prolongar nossa própria infelicidade. [...] O que está por trás disso?
Em parte, sem dúvida, a vaidade. Gostaríamos de provar a nós mesmos que somos amantes de alta categoria, heróis trágicos; e não apenas soldados comuns no grandioso exército dos enlutados, que marcha por aí tentando ver o lado bom das coisas. Mas isso não é tudo.
Acredito que também haja certa confusão. Não desejamos realmente que o luto seja prolongado desde suas primeiras agonias: ninguém poderia desejar isso. Contudo desejamos outra coisa, da qual o luto pode vir a ser um sintoma frequente, e então confundimos o sintoma com a coisa em si. Escrevi certa vez  que o luto não é a interrupção do amor matrimonial, mas uma das suas fases normais - como a lua-de-mel. O que desejamos é viver o nosso casamento de forma boa e fiel, mesmo nessa fase. Se machuca (e com certeza machuca), aceitamos a dor como uma parte necessária dessa fase. Não queremos escapar dela a preço da deserção e do divórcio, matando o morto pela segunda vez. Éramos uma só carne. Agora que ela foi cortada em duas, não vamos fazer de conta que ela está inteira e completa. Ainda continuaremos casados, ainda apaixonados. Por isso, ainda sentiremos dor.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

5 de agosto de 2013

EU A DESEJARIA DE VOLTA?

|5 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da esposa, Joy

QUE tipo de amante sou eu se penso tanto em minhas aflições e tão pouco na dela? Até mesmo o insano clamor "Volte!" é todo por minha causa. Eu jamais sequer questionei se um retorno como esse, se ele fosse possível, seria bom para ela. Eu a quero de volta como um ingrediente para a restauração do meu passado. Será que eu poderia desejar algo pior para ela? Depois de ter passado pela morte, retornar e, num momento posterior, ter de passar por todo o processo de morte de novo? Dizem que Estevão foi o primeiro mártir. Porém, não teria sido Lázaro quem encarou o desafio maior?

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

4 de agosto de 2013

LAMENTO

|4 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da esposa, Joy

TENHO de pensar mais em H. e menos em mim mesmo.
Sim, isso soa muito bem. Mas há um porém em tudo isso. Eu penso nela quase o tempo todo. Penso sobre os fatos relacionados a H. - palavras ditas, risos e coisas que ela fez. Mas é a minha própria mente que seleciona e agrupa tudo isso. Menos de um mês depois de sua morte, já posso sentir o início lento e insidioso de um processo que tornará H. em uma mulher cada vez mais imaginária. Fundado em fatos, sem dúvida. Não estarei introduzindo nada de fictício (ou pelo menos, assim espero). Porém, será que a composição final não terá cada vez mais a minha própria cara? A realidade não estará mais presente para me controlar, para me refrear, como a H. real fazia tantas vezes, de forma inesperada, sendo tão completamente ela mesma e não eu.
O presente mais precioso que o casamento me proporcionou foi esse impacto constante de algo muito próximo e íntimo e ao mesmo tempo incomparavelmente outro, resistente - em uma palavra, real. Será que todo esse trabalho será desfeito? Será que o que eu ainda posso chamar de H. acabará submergindo de forma terrível, e não passará de um dos meus sonhos da época da faculdade? Ó, minha querida, volte por um só momento e espante esse fantasma miserável. Ó, Deus, por que tiveste tanto trabalho para forçar essa criatura a sair para fora do seu casulo, se ela está condenada a ser tragada para dentro dele de novo?

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

3 de agosto de 2013

SOZINHA RUMO À SOLIDÃO

|3 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da esposa, Joy

O SER "uma só carne" tem um limite. Não se pode realmente compartilhar das fraquezas, dos medos e do sofrimento de outra pessoa. O que você sente pode até ser ruim. Pode até ser tão ruim quanto o que o outro sentiu, mas eu não confiaria muito em alguém que alegasse isso, pois ainda assim seria bem diferente. Quando eu me refiro ao medo, estou falando do simples medo animal, da defesa do organismo contra a destruição, do sentimento sufocante; o sentimento de ser um rato numa ratoeira. Essa sensação é intransferível; a mente pode até se identificar, mas o corpo tem menos chance. De certa forma, os corpos de pessoas que se amam tem menos chance ainda de conseguir fazê-lo. Todos os seus momentos de amor os preparam para não terem sensações idênticas, mas sim complementares, correlativas, e até mesmo opostas.
Ambos sabíamos disso. Eu vivi as minhas próprias misérias, não as delas; ela passou pelas dela, não pelas minhas. O fim de suas misérias teriam significado o amadurecimento das minhas. Havíamos partido em estradas diferentes. Essa verdade fria, essas terríveis regras de trânsito ("A senhora, dirija-se à direito, e o senhor, à esquerda")  são somente o começo da separação que é a própria morte. 
E tal separação, suponho, espera por todos nós. Estive pensando no meu relacionamento com H. e cheguei à conclusão de que foi uma infelicidade termos nos separado. Um dia ela me disse: "Mesmo se nós dois morrêssemos exatamente agora, enquanto estamos deitados aqui lado a lado, seria o mesmo tipo de separação que aquela que você tanto teme". É claro que ela não sabia mais do que. Mas H. estava próxima da morte, perto o bastante para arriscar uma dedução. Ela costumava dizer "sozinha rumo à solidão". Ela dizia que era assim que se sentia. E quão imensamente improvável que fosse diferente! O que nos uniu foi o tempo, o espaço e o corpo; essas eram as linhas de telefone com as quais nos comunicávamos. Corte uma linha ou ambas simultaneamente. Isso não dará fim à conversa de todo jeito?

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

2 de agosto de 2013

ESCADA DO ÊXITO

GANHAR

CONSOLIDAR

TREINAR

ENVIAR

QUANDO A FERIDA DA LEMBRANÇA REABRE

|2 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da esposa, Joy

NINGUÉM me avisou que o sentimento de luto era tão parecido com o de medo. Não estou com medo, mas a sensação é semelhante. O mesmo frio na barriga, a mesma fadiga, os mesmos bocejos. Eu continuo engolindo. 
Em outros momentos é como se eu estivesse levemente bêbado ou abalado. Vejo como uma espécie de véu entre mim e o resto do mundo. Tenho dificuldade de aceitar o que estão dizendo. Tudo parece tão desinteressante. Ainda assim, quero que os outros estejam ao meu redor. Fico apavorado quando a casa está vazia. Se ao menos as pessoas pudessem apenas falar umas com as outras, e não comigo.
Há momentos inesperados em que algo dentro de mim tenta me garantir que, na verdade, eu não ligo para nada disso, ou pelo menos nem tanto assim. Afinal, o amor não é tudo na vida e um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Eu tenho muito do que as pessoas chamam de "recursos". Pessoas assim acabam superando essas coisas. Vamos lá, não posso me deixar levar dessa maneira. Tenho vergonha de dar ouvidos a essa voz, mas parece que, por um instante, ela faz sentido. Até que então, a ferida da lembrança reabre e todo esse "senso comum" desaparece como uma formiga na boca de uma fornalha.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

1 de agosto de 2013

MÚSICA DO DIA [01.08.2013]

Resgate - Eu Estou Aqui

Música para começar bem o mês de agosto! 

SOFRENDO E REFLETINDO SOBRE O SOFRIMENTO

|1 DE AGOSTO|

Lewis lamenta a morte da sua esposa, Joy

SERÁ que esses meus rabiscos são mórbidos? Certa vez eu li a seguinte frase: "Não dormi a noite toda com dor de dente, pensando na dor de dente e no fato de não conseguir dormir". Essa é uma verdade que vale a vida. Parte de toda a miséria é, por assim dizer, a sombra ou o reflexo dessa mesma miséria; o fato de que você não apenas sofre, mas também fica pensando no fato de estar sofrendo. Não estou apenas vivendo o sofrimento a cada dia interminável, mas vivo a cada dia refletindo sobre o que é viver sofrendo todos os dias.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]