31 de outubro de 2013

MÚSICA DO DIA DOS 496 ANOS DA REFORMA [31.10.2013]

TOURNIQUET - SOLA CHRISTUS


 

Sola fide. Sola scriputra. Solus Christus. 
Sola gratia. Soli Deo gloria.

EM TERRITÓRIO INIMIGO

|31 DE OUTUBRO|

Screwtape distorce o dom do prazer

NUNCA se esqueça de que, quando estamos lidando com algum prazer em sua forma sadia e normal, estamos, em certo sentido, em território Inimigo. Tenha consciência de que temos alcançado muitas almas por meio dos prazeres. Em todo caso, trata-se de uma intervenção dele, não nossa. Foi Ele quem criou os prazeres; todas as nossas pesquisas até agora fracassaram em criar algum. Tudo o que podemos fazer é encorajar os seres humanos a experimentarem os prazeres que o Inimigo [Deus] criou, mas em um momento, de uma forma e com intensidade que ele proibiu. Portanto, sempre tentamos transformar as condições naturais de qualquer prazer em algo que seja menos natural, menos característico do seu inventor e menos prazeroso. A fórmula é uma dose crescente de desejo, em troca de um prazer cada vez menor! Isso é bem mais seguro e tem muito mais estilo. Comprar a alma do homem em troco de nada é o que pode de fato agradar o coração de Nosso Pai [diabo]. E as crises são o melhor momento para dar início a esse processo.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

30 de outubro de 2013

O MAIS PROFUNDO PRAZER

|30 DE OUTUBRO|

O HOMEM paradisíaco sempre optou por seguir a vontade de Deus. Ao agir assim, ele satisfazia também o seu próprio desejo, por dois motivos. Todas as ações requeridas dele, na verdade, eram conformes com suas inclinações irrepreensíveis. Além disso, servir a Deus em si era seu mais profundo prazer, e sem esse diferencial todas as alegrias seriam insípidas. Assim, a questão "Será que estou fazendo isso para agradar a Deus, ou só por que gosto?" não existia, já que fazer coias para Deus conduzia sua felicidade como um cavalo bem treinado, ao passo que, quando estamos felizes, nossa vontade acaba sendo levada como um navio que desliza numa correnteza. O prazer era uma oferta aceitável a Deus, porque ofertar era um prazer.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

29 de outubro de 2013

NÃO SE TRATA DO DESENROLAR DE UM FILME

|29 DE OUTUBRO|

NÃO devemos imaginar o destino como um filme que desenrola em sua maior parte de forma independente, ainda que as orações nos permitam acrescentar certos componentes de vez em quando. Pelo contrário; o que o filme nos apresenta, à medida que se desenrola, já contém os resultados de nossas orações e de todos os nossos atos. A dúvida não é se um evento ocorreu em decorrência das suas orações. Quando um acontecimento pelo qual você orou ocorre, sua oração contribuiu para isso. Se ocorre o oposto, não significa que sua oração foi ignorada; ela certamente foi levada em conta e recusada para o seu bem último e para o bem do universo (por exemplo, é melhor para você e para todos  os outros ao longo do caminho, que as outras pessoas, inclusive as maldosas, exerçam o livre-arbítrio, do que você ser protegido da crueldade ou da traição às custas da transformação dos seres humanos em autômatos). Contudo, isso é, e precisa continuar sendo, uma questão de fé. Penso que você só se iludirá ao tentar achar evidências especiais para isso em certos casos, mais do que em outros.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

28 de outubro de 2013

NOSSA CONTRIBUIÇÃO PARA O EQUILÍBRIO CÓSMICO

|28 DE OUTUBRO|

QUANDO nós oramos pelo resultado de uma batalha ou de uma consulta médica, o pensamento que geralmente passa por nossa mente (se pelo menos nós soubéssemos) é de que a situação já está decidida de um jeito ou de outro. Creio que isso não é razão para interrompermos nossas orações. A situação certamente está decidida - em certo sentido, ela foi decidida "antes de tudo existir". Porém, uma das coisas levadas em conta para decidi-la e, portanto, uma das coisas que a ocasionou, pode ser a própria oração que estamos fazendo. Então, apesar disso parecer chocante, concluo que podemos, ao meio-dia, fazer parte das causas de um acontecimento das 10 horas da manhã. (Alguns cientistas entenderiam isso com mais facilidade que os leigos). A imaginação, sem dúvida, tentará nos impor todos os tipos de truques nesse ponto. Ele questionará: "Então, se eu parar de orar, Deus pode voltar atrás e modificar o que já aconteceu?". Não. O evento já aconteceu e uma das causas foi o fato de você estar fazendo perguntas em vez de orar. Ou, pode perguntar: "Se eu começar a orar, Deus pode voltar atrás e modificar o que já aconteceu?". Não. O evento já aconteceu e uma das causas foi sua presente oração. Assim, algo realmente depende das minhas escolhas. Meu livre-arbítrio contribui para o equilíbrio cósmico. Essa contribuição é feita na eternidade ou "antes de tudo existir"; mas a minha consciência de contribuição me alcança em um ponto específico do período de tempo.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

27 de outubro de 2013

MAIS UMA VEZ O TEMPO

|27 DE OUTUBRO|

GOSTARIA de tratar de uma dificuldade que certas pessoas tem em relação à ideia de oração. Certa pessoa se expressou nos seguintes termos: "Tudo bem, posso até acreditar em Deus; o que não aceito é a ideia de que ele seja capaz de atender centenas de milhões de pessoas que o invocam ao mesmo tempo". E descobri que muitas pessoas pensam assim.
Agora,a  primeira coisa a se observar é que o conflito está nas palavras "ao mesmo tempo". A maioria de nós só consegue imaginar Deus atendendo a qualquer número de requerentes se eles vierem um de cada vez e se Deus tiver um tempo infinito para dedicar-se a eles. Portanto, o que realmente se encontra no âmago dessa dificuldade é a ideia de que Deus tenha de fazer coisas demais, em um só instante do tempo.
Bem, é isso que acontece conosco. Nossa vida transcorre de momento em momento. O momento presente desaparece antes que o outro chegue: e há pouco espaço para cada etapa. O tempo é assim. E é claro que você eu eu tendemos a ter por certo que essa série de tempos - esse arranjo de passado, presente e futuro - não é simplesmente a forma como a vida é, mas a forma como todas as coisas de fato existem. Tendemos a pressupor que todo o universo e o próprio Deus estão o tempo todo se movendo do passado para o futuro, assim como fazemos.

[C. S. Lewis]
- de Mere Christianity [Cristianismo Puro e Simples]

26 de outubro de 2013

COMO DEUS PODE RESPONDER ÀS ORAÇÕES

|26 DE OUTUBRO|

Screwtape oferece uma breve lição sobre o tempo e a eternidade

VOCÊ deve lembrar que o seu paciente considera o tempo a realidade última. Ele supõe que o Inimigo [Deus], tal como ele mesmo, vê algumas coisas como presente, lembra de outras como passado e antecipa outras como futuro; e mesmo que ele acredite que o Inimigo [Deus] não vê as coisas dessa maneira, ainda sim, no mais fundo do seu coração, ele considera essa uma das peculiaridades do modo de percepção do Inimigo [Deus] - o paciente não pensa realmente (por mais que diga que sim) que as coisas como o Inimigo [Deus] as vê são as coisas como elas são! Se você tentasse explicar-lhe que as orações que os homens fazem hoje em dia são algumas das inumeráveis coordenadas com as quais o Inimigo [Deus] harmoniza o tempo de amanhã, o paciente responderia que, neste caso, o Inimigo [Deus] sempre soube que os crentes iam fazer tais súplicas e, portanto, não foram orações livremente feitas, mas predestinadas. E ele acrescentaria que as condições do tempo de um dado dia podem ser relacionadas, por meio de suas várias causas, com a própria origem do problema - de modo que a coisa toda, tanto do lado humano quanto do material, teria ficado estabelecida desde o princípio. O que ele quer dizer é óbvio para nós: que o problema de adaptar as condições particulares do tempo a orações particulares é apenas aparente, no dois pontos do seu modo temporal de percepção, diante do problema total de adaptar o universo espiritual como um todo ao universo físico; que a criação, como um todo, opera em todos os pontos do espaço e do tempo, ou antes, que o seu tipo de consciência o força a considerar a totalidade do ato criativo autoconsciente como uma série de eventos sucessivos. O fato de aquele ato criativo deixar espaço para o seu livre arbítrio é o grande problema, o segredo por trás de toda aquela tolice do Inimigo [Deus] sobre "amor". Como isso se dá, não é problema algum; o Inimigo [Deus] prevê as contribuições voluntárias que os seres humanos farão no futuro, mas os  fazendo-as em seu agora ilimitado. E é claro ver um ser humano fazendo algo não significa fazer com que ele o faça.

[C. S. Lewis]
- de The Screwtape Letters [Cartas do Diabo a seu Aprendiz]

25 de outubro de 2013

A MORTE É REAL

|25 DE OUTUBRO|

A GUERRA torna a morte mais real para nós, e a maioria dos grandes cristãos do passado acabaria se referindo a isso como uma de suas bênçãos. Eles achavam que era bom estarmos sempre conscientes da nossa mortalidade. Estou inclinado a pensar que eles tem razão. Toda a vida animal em nós, todos os esquemas de felicidade que se concentram neste mundo, sempre estiveram fadados a uma frustração final. Em outros tempos, só mesmo um homem sábio poderia se dar conta disso. Hoje, o mais estúpido dos homens o sabe. Nunca nos enganamos sobre o tipo de universo em que temos vivido, e que temos de aceitar. Todas as tolas esperanças não-cristãs depositadas na cultura humana estão totalmente destruídas agora. Se supúnhamos estar construindo um céu na terra, se estávamos tentando fazer o mundo de hoje passar de um lugar de peregrinação para uma cidade permanente, para satisfazer a alma humana, ficaremos desiludidos, e rapidamente. Porém, se imaginávamos que, para certas almas, e em certos tempos, a vida de estudos, humildemente ofertada a Deus, fosse, em sua própria fragilidade, uma maneira de vislumbrar a realidade e a beleza divinas que esperamos apreciar daqui para frente, podemos continuar pensando assim.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

24 de outubro de 2013

DEFENDENDO-SE DO MEDO

|24 DE OUTUBRO|

O TERCEIRO inimigo [do acadêmico em tempos de guerra] é o medo. A guerra nos ameaça de morte e sofrimento. Nenhuma pessoa - e principalmente nenhum cristão capaz de se lembrar do Gêtsemani - precisa tentar atribuir uma indiferença estoica a essas coisas, mas podemos nos guardar das ilusões da imaginação. É só pensarmos nas ruas de Varsóvia e contrastar as mortes ali ocorridas com uma abstração chamada vida. Para nenhum de nós a questão é entre vida ou morte; é apenas uma questão de qual morte será - por uma metralhadora hoje ou por um câncer daqui a quarenta anos. O que a guerra traz de novo no que diz respeita à morte? Ela certamente não torna a morte mais frequente; cem por cento das pessoas morrem, e essa porcentagem não pode ser aumentada. A guerra faz com que várias morte aconteçam mais cedo, mas dificilmente acharia que é isso mesmo que tememos. Certamente, quando a hora chegar, fará pouca diferença quantos anos ficaram para trás. Será que a guerra aumenta as nossas chances de passar por uma morte penosa? Eu duvido. Até onde posso enxergar, o que chamamos de morte natural normalmente vem precedida de sofrimento, e um campo de batalha é um dos poucos lugares onde alguém tem uma perspectiva razoável de morrer sem sofrimento. Será que ela diminui as nossas chances de morrer em paz com Deus? Não posso acreditar. Se o exército não é capaz de persuadir um homem a se preparar para a morte, que série imaginável de circunstâncias poderia fazê-lo? Ainda assim, a guerra faz alguma diferença em relação à morte. A guerra nos força a nos lembrar dela. A única razão porque o câncer aos sessenta anos ou a paralisia aos setenta e cinco não nos incomoda é que nos esquecemos deles.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

23 de outubro de 2013

DEFENDENDO-SE DA FRUSTRAÇÃO

|23 DE OUTUBRO|

O SEGUNDO inimigo [do acadêmico em tempos de guerra] é a frustração - o sentimento de que não temos tempo para terminar as coisas. Se eu lhe disser que ninguém tem esse tempo e que a mais longa vida humana não faz nenhum homem, em qualquer área do conhecimento, passar de um iniciante, posso até parecer estar dizendo algo acadêmico e teórico. Você ficaria surpreso em saber o quão cedo começamos a sentir a curteza da rédea, que são muitas as coisas para as quais, mesmo na meia-idade, somos obrigados a dizer: "Não tenho tempo", "É tarde demais para isso", ou "Isso não é para mim". Mas a própria natureza te proíbe de compartilhar esse tipo de experiência. Uma atitude mais cristã, que pode ser alcançada em qualquer idade, é deixar o futuro nas mãos de Deus. E é bom que façamos isso, porque a Deus pertence o nosso futuro, não importa se o deixamos em suas mãos ou não. Jamais confie, seja em tempo de guerra ou de paz, a sua virtude ou felicidade ao futuro. Um trabalho feliz é bem mais feito por aquele que conduz seus planos de longo prazo com certa leveza e que trabalha de momento em momento "como para o Senhor". Somos encorajados a pedir não apenas nosso pão diário. O único tempo em que podemos cumprir qualquer tarefa ou receber qualquer graça é o presente.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

22 de outubro de 2013

DEFENDENDO-SE DA ANSIEDADE

|22 DE OUTUBRO|

O MAIOR inimigo [do acadêmico em tempos de guerra] é a ansiedade - aquela tendência de pensar na guerra e senti-la quando, na verdade, o que pretendíamos fazer mesmo era pensar em nosso trabalho. A melhor defesa é reconhecer que, assim como tudo tudo o mais, a guerra na verdade não criou nenhum inimigo novo, apenas agravou o antigo. Sempre  existem inúmeros adversários em relação ao trabalho. Vivemos nos apaixonando ou brigando, procurando um emprego ou com medo de perdê-lo, ficando doentes e nos recuperando, acompanhando escândalos públicos. Se nos deixarmos levar, estaremos sempre esperando o término de alguma distração ou outra para, então, nos concentrarmos em nosso trabalho. As únicas pessoas que alcançam êxito são as que querem tanto o conhecimento que insistem em buscá-lo mesmo em condições pouco favoráveis. As condições nunca serão favoráveis. É claro que há momentos em que a pressão da ansiedade é tão grande que só o autocontrole de um super-homem seria capaz de resisti-la. Esses momentos acabam chegando tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer o melhor que pudermos.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

21 de outubro de 2013

PRESENTES NA CRIAÇÃO DO MUNDO

|21 DE OUTUBRO|

NA MAIORIA das nossas orações, se amplamente analisadas, pedimos por um milagre ou por acontecimentos cuja base tem de ter sido lançada antes de eu ter nascido; lançada no princípio do universo. No entanto, para Deus (ainda que não para mim), tanto eu quanto a oração que fiz em 1945 estavam tão presentes na criação do mundo quanto estão agora e estarão daqui a um milhão de anos. O ato criativo de Deus é atemporal e atemporalmente adaptado aos elementos "livres" dentro dele; porém, essa adaptação atemporal se encontra em nossa consciência como uma sequência de oração e resposta.

[C. S. Lewis]
- de Miracles [Milagres]

20 de outubro de 2013

O CÉU RETROCEDERÁ

|20 DE OUTUBRO|

"FILHO", disse, "em seu estado atual você não pode compreender a eternidade: quando Anodos olhou pela porta da eternidade, não retornou com mensagem alguma. Mas você pode ter uma ideia dela se disser que tanto o bem quanto o mal, quando plenamente desenvolvidos, se tornam retrospectivos. Não somente este vale, mas todo o passado terreno deles será visto como um céu pelo que estão estão salvos. Não apenas o crepúsculo naquela cidade, mas toda a vida na terra será vista pelos perdidos com um inferno. É isso que os mortais interpretam mal. A respeito de um sofrimento temporário, eles dizem: 'Não há bem-aventurança futura capaz de compensar isso' - sem saber que o céu, uma vez alcançado, terá efeito retroativo, tornando em glória até mesmo essa agonia. E quando se trata de algum prazer pecaminoso, dizem: 'Deixe-me gozar só isso, e assumirei as consequências' - sem ter a mínima noção de como a condenação terá efeito retroativo sobre o seu passado, contaminando todo o prazer do pecado. Ambos os processos tem início até mesmo antes da morte. O passado do homem bom começa a modificar-se de tal forma que o seus pecados perdoados e sofrimentos lembrados passam a ter o gosto do céu; o passado do homem mau já se conforma à sua maldade e enchem-se apenas de miséria. É por isso que, no fim de tudo, quando o sol nascer aqui e o crepúsculo lá embaixo se transformar em trevas, os abençoados dirão: 'Jamais vivemos em outro lugar que não fosse o céu'. E os perdidos dirão: 'Sempre estivemos no inferno'. E ambos estarão dizendo a verdade".

[C. S. Lewis]
- de The Great Divorce [O Grande Abismo]

19 de outubro de 2013

ACABAR COM A DOR DE DENTE

|19 DE OUTUBRO|

PODERÍAMOS perguntar se, ao se esvair a esperança de acabar com a guerra por meio do pacifismo, haveria alguma outra esperança. Porém, esta pergunta implica um modo de pensar que me parece bastante estranho. Implica assumir que as grandes misérias permanentes da vida humana só seriam curáveis se fossemos capazes de achar o tratamento adequado. Esse tipo de pensamento se processa então por eliminação e leva à conclusão de que, o que quer que nos reste, por mais improvável que se prove como cura, deve ser levado até o fim. Daí o fanatismo dos marxistas, freudianos, eugenistas, espiritualistas, unitaristas federalistas, vegetarianos e de todo o resto. Porém, eu não tenho garantia alguma de que qualquer coisa que possamos fazer possa erradicar o sofrimento. Acho que os melhores resultados são aqueles obtidos por pessoas que trabalham constantemente em silêncio, perseguindo objetivos específicos como a abolição da escravatura, a reforma do sistema carcerário, os atos de protesto nas fábricas, ou o combate à tuberculose; e não por aqueles que se acham capazes de atingir a justiça, a saúde ou a paz universais. Acredito que a arte de viver consiste em tentar impedir, da melhor forma possível, a maldade imediata. Prevenir ou postergar uma guerra particular por meio de alguma política sábia, ou apaziguar um ataque específico pela força ou pela habilidade, ou, menos terrível, por meio da misericórdia para com os conquistados e os civis, é mais útil do que todas as propostas de paz universal já feitas. Da mesma forma que um dentista capaz de acabar com um dor de dente merece mais reconhecimento da humanidade do que todos os seres humanos que pensam conhecer algum esquema para produzir uma raça perfeitamente saudável.

[C. S. Lewis]
- de The Weight of Glory [Peso de Glória]

18 de outubro de 2013

ALGUMAS POUSADAS AGRADÁVEIS

|18 DE OUTUBRO|

CREIO que a doutrina cristã do sofrimento explica um fato curioso sobre o mundo em que vivemos. A felicidade e a segurança estáveis que todos almejamos, Deus retém de nós pela própria natureza do mundo; mas a alegria, o prazer e a diversão, ele espalhou por toda parte. Jamais estamos completamente seguros, porém temos muita alegria, e alguma euforia. E não é difícil saber por quê. A segurança que desejamos nos ensinaria a descansar o nosso coração neste mundo e seria um obstáculo à nossa volta a Deus; uns poucos momentos de felicidade no amor, um belo cenário, uma sinfonia, um encontro alegre entre amigos, um banho ou um bom jogo de futebol não tem essa tendência. Nosso Pai pode até nos dar um alento por meio de algumas estalagens ou pousadas agradáveis ao longo da estrada, mas jamais nos encorajaria a confundi-las com o nosso lar.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

17 de outubro de 2013

MENSAGEIRO E PEREGRINO


a tarefa de Cristão de anunciar o Reino Eterno


Cristão é um jovem com um livro na mão e uma mensagem para todos. Vive numa Terra Estrangeira, onde governam Corruptos e Enganadores, chamada Reino das Coisas Passageiras. Desde que esteve à sombra da Cruz, onde seu fardo foi tirado e ele recebeu vida nova, não segue mais as regras desta terra. Ele segue as regras do Mestre enquanto viaja para a Cidade Celestial. Nesta jornada de peregrino, é um representante de outro reino - o Reino dos Céus, que nunca terá fim!

Esta é a Era de Todas as Causas. Muito cedo, Cristão foi incentivado a ter a sua. Família e amigos desejavam que escolhesse causa conhecidas, como a Grande Natureza, A Política das Nações, o Grito do Pobres do Mundo, a Saúde em Primeiro Lugar, a Religião dos Que Mais Creem. Ou, ainda, por não entenderem a causa do Reino, incentivaram-noa viver sem causa, alheio a todos os Grupos de Vozes ao redor. Poderia morar no Jardim Enfeitiçado e passar os dias em frente à Caixa de Distrações, mudando de canal até adormecer. Contudo, na Cruz, Cristão entendeu que lutar pelo Reino dos Céus é lutar por todas as causas (Mt 6.10; Sl 24.1), pois o grande Mestre tem redenção para toda a Criação (Rm 8.19-23).

A tarefa de Cristão em Terra Estranha é anunciar este Reino Eterno (Mt 28.18-20). Não é uma tarefa simples, pois anunciar o Reino é muito mais do que sair nas praças e gritar uma mensagem para todos. Tampouco se refere a conquistar, manipular, ou forçar decisões. Cristão precisa viver a Mensagem. Só assim ela será eficaz e servirá de exemplo para outros, pois o Reino começa dentro de cada um (Lc 17.20-21). Faz isso conhecendo o Livro, o qual nunca abandona. É o Livro da Verdade, onde encontra todas as informações necessárias sobre o Reino dos Céus e os discursos e ensinos do Rei. O Livro o impede que se desvie do caminho ou que esqueça sua tarefa. Cristão deve consultá-lo todos os dias, atentamente, aberto aos seus ensinos (Sl 119.105; Js 1.8).

No Livro, Cristão conheceu um Mensageiro Mais Experiente e aprendeu com ele que, ao deparar-se com algo injusto, corrupto, enganoso e errado em Terra Estranha, deve agir em oposição, fazendo o que é justo, íntegro, verdadeiro e correto. É assim que age o Rei (Rm 12.17; Jr 9.24). "O maior dom é sempre o amor" - escreveu o Mensageiro. "Nunca subestime a influência de pequenos atos de amor" - disse ainda (1Co 13). "Quer ver as coisas mudando ao seu redor e o Reino das Coisas Passageiras dando lugar ao Eterno? Ame. Não finja amar. Ame realmente e odeie o que está errado" (Rm 12.9-11).

Seguindo viagem, Cristão abre o Livro e anuncia: "Ouçam todos, cidadãos do reino das Coisas Passageiras! Vocês devem ir à sombra da Cruz, deixar ali seus fardos, receber nova vida e embarcar na jornada rumo à Cidade Celestial. Depois, precisam seguir todos os princípios do Mestre enquanto estão em Terra Estranha. Se assim fizerem, pouco a pouco, o Reino das Coisas Passageiras, com todos os seus enganos, tristezas e injustiças, será substituído pelo Reino dos Céus, um governo repleto de justiça, paz e alegria (Rm 14.17). Ouçam a Mensagem do Rei! Vivam a Mensagem do Rei! Acolham aos seus princípios". Cristão não se cansará e não se calará até que a Justiça e a Verdade sejam cumpridas em toda a Terra; até que seu Rei volte para reinar eternamente (Is 42.4).

texto inspirado na obra O Peregrino, de John Bunyan

Por Eliceli Katia Bonan, 26 anos, é contadora de histórias,
seguidora de Cristo, jornalista e voluntária em Jovens Com Uma Missão (JOCUM)

A PRODUÇÃO DO BEM COMPLEXO

|17 DE OUTUBRO|

O HOMEM piedoso visa o bem do seu próximo e, assim, acaba fazendo a "vontade de Deus", colaborando conscientemente com o "bem simples". O homem cruel oprime o seu semelhante e assim, faz o mal simples. Mas, ao fazer isso, ele é usado por Deus, sem seu próprio conhecimento ou permissão, para produzir um bem complexo. E então o primeiro homem serve a Deus como filho e o segundo, como instrumento. Certamente você acabará realizando o propósito de Deus, não importa como venha a agir, mas fará toda a diferença se optar por servi-lo como Judas ou como João. Todo o sistema é baseado, por assim dizer, no confronto entre homens bons e maus, e os frutos positivos da fortitude, da paciência, da piedade e do perdão, em razão dos quais o homem cruel tem a permissão de ser cruel, pressupõem que o homem bom geralmente continue a buscar o bem simples. Digo "geralmente" porque há ocasiões em que o homem tem o direito de ferir (ou mesmo, em minha opinião, de matar) seu semelhante, mas apenas quando a necessidade é urgente e o bem a ser alcançado é óbvio, e no geral (embora nem sempre), quando o que inflige a dor possui autoridade definida para fazê-lo - a autoridade paterna derivada da natureza, a do magistrado ou soldado derivada da sociedade civil, ou a do cirurgião, derivada na maioria da vezes do próprio paciente. Transformar isso em uma autorização para afligir a humanidade, como se "a aflição fosse boa para ela" [...] não significa quebrar o esquema divino, mas voluntariar-se para o posto de Satanás dentro desse esquema. Se você fizer o trabalho dele, deve estar preparado para receber o seu salário.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

16 de outubro de 2013

ISAÍAS 53.3-4



Mas o fato é que ele levou nossas doenças, nossas deformidades, tudo que há de errado em nós. Pensamos que ele era culpado de tudo isso, que Deus o estava castigando por sua culpa. Mas foram os nossos pecados que caíram sobre ele, que o feriram, dilaceraram e esmagaram - nossos pecados! Ele recebeu o castigo, e isso nos restaurou.
Por meio das feridas dele, somos curados.
[Isaías 53.3-4 (Linguagem Contemporânea)]


OS PRODUTOS DO SOFRIMENTO

|16 DE OUTUBRO|

A TENDÊNCIA desse ou daquele poeta ou romancista de novelas pode ser apresentar o sofrimento como totalmente negativo em seus efeitos, como se produzisse e justificasse toda espécie de maldade e brutalidade no sofredor. E, naturalmente, a dor, da mesma forma que o prazer, pode ser percebida desta forma: tudo o que é dado a uma criatura com livre arbítrio deve ter dois aspectos, não pela natureza do doador ou do que foi dado, mas pela natureza do receptor. Os resultados negativos da dor podem vir a se multiplicar se os observadores ensinarem constantemente aos sofredores que esse são precisamente os resultados certos e nobres que deve demonstrar. A indignação quanto ao sofrimento de outra pessoa, embora seja uma paixão generosa, precisa ser bem controlada para não roubar a paciência e a humildade dos que sofrem e semear a ira e o cinismo em seu lugar. Porém, não estou convencido de que o sofrimento, se poupado de tal indignação forçosamente vicária tenha qualquer tendência natural de produzir tais males. Nunca achei que as trincheiras ou os campos de batalha fossem mais repletos de ódio, egoísmo, rebelião e desonestidade, do que qualquer outro lugar. Vi grande beleza de espírito em certas pessoas que passaram por grandes sofrimentos. Vi homens que, no correr do anos, se tornaram melhores e não piores do que eram, e vi a pior doença produzir fortitude e mansidão a partir de situações pouco prováveis. Eu reconheço em personagens históricos amados e reverenciados, como Johnson e Cowper, traços que dificilmente teriam sido toleráveis se eles tivessem sido mais felizes. Se o mundo é de fato um "vale de formação de almas", de uma maneira geral, ele parece estar fazendo o seu trabalho. 

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

15 de outubro de 2013

A HISTÓRIA DA TRIBULAÇÃO DE UM HOMEM

|15 DE OUTUBRO|

MINHA própria experiência é mais ou menos a seguinte: estou progredindo, ao longo da estrada da vida, em minha típica e conformada condição pecaminosa e decaída, absorvido por um encontro agradável com meus amigos marcado para amanhã ou por um pouco de trabalho que estimula a minha vaidade hoje, ou por um feriado, ou por um novo livro, quando, de repente, dores abdominais apontam para uma doença séria, ou uma notícia nos jornais que ameça o mundo de destruição arruína todas essas opções. Em princípio, fico espantado e todas as minhas pequenas alegrias se vão como brinquedos quebrados. Depois, lentamente e com relutância, tento pouco a pouco colocar-me naquele estado mental em que deveria permanecer o tempo todo. Então, eu me lembro de que não era para todos aqueles brinquedos se apossarem do meu coração; que meu bem real está em outro mundo e que meu único e verdadeiro tesouro é Cristo. E quem sabe assim, pela graça de Deus, por um dia ou dois, eu tenha sucesso em me tornar uma criatura conscientemente dependente de Deus, capaz de extrair forças das fontes certas. Porém, assim que a ameaça é retirada, toda a minha natureza se volta para os brinquedos: fico até mesmo ansioso, Deus que me perdoe, por banir de minha mente a única coisa que me sustentou durante a ameaça, porque ela agora está associada à miséria daqueles poucos dias. Portanto, a necessidade de sofrimento está muito clara. Deus me possui por apenas quarenta e oito horas se comente para tirar tudo do meu alcance. Foi só Deus guardar a sua espada por um momento, que eu me comportei como um filhote depois da odiosa hora do banho - sacudindo-se ao máximo a fim de me secar e correndo de volta para minha sujeira confortável, se não para monte de estrume mais próximo, pelo menos para o canteiro mais próximo. E essa é a razão porque as tribulações não podem parar até que Deus nos veja recompostos ou veja que não há esperanças para nossa recomposição.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

14 de outubro de 2013

NÃO APEDREJE O MENSAGEIRO

|14 DE OUTUBRO|

TODO E qualquer argumento para justificar o sofrimento provoca ressentimentos amargos contra o seu autor. Você quer saber como eu me comporto quando passo pela experiência do sofrimento, não quando estou escrevendo sobre ele. Você não precisa adivinhar, pois eu vou lhe contar; não passo de um grande covarde. Porém, o que isso pode acrescentar? Quando penso no sofrimento - a ansiedade de que me consome com fogo e a solidão que se estende como um deserto, a triste rotina da miséria monótona, as dores entorpecentes que escurecem todo o nosso horizonte, ou aquelas dores repentinas e nauseantes que arrebatam o coração, dores que já parecem intoleráveis e que depois aumentam, dores furiosas como picadas de escorpião que provocam movimentos alucinantes em alguém que parecia semimorto por causa das torturas já sofridas - isso "quase arrebata meu espírito". Se eu conhecesse algum meio de escapar, rastejaria através dos canos de esgoto para encontrá-lo. Porém, qual a vantagem de lhe contar sobre os meus sentimentos? Você os conhece muito bem: eles são iguais aos seus. Não estou dizendo que o sofrimento não seja doloroso. O sofrimento dói. É isso que a palavra significa. O que estou tentando fazer é mostrar que a velha doutrina cristã de "aperfeiçoar por meio do sofrimento" (Hb 2.10) não é inacreditável. Provar que isso seja agradável está fora dos meus planos.

[C. S Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

13 de outubro de 2013

COLABORADORES NA CRIAÇÃO

|13 DE OUTUBRO|

SE ALGUMAS vezes o sofrimento elimina a falsa suficiência da criatura, em condições de "juízo" ou "sacrifício", o sofrimento lhe ensina a autossuficiência que ela realmente deveria possuir - a "força que, quando dada pelos céus, pode ser chamada de sua". Nesse caso, na falta de todos os motivos e apoios naturais, ela age somente na força que Deus lhe confere por meio da sua vontade sujeitada. A vontade humana se tornará realmente criativa e verdadeiramente nossa quando se tornar de Deus, e esse é um dos muitos sentidos em que o que perde a sua alma poderá achá-la de novo. Em todos os outros atos nossa vontade é alimentada pela natureza, isto é, por meio de coisas criadas e não pelo eu - pelos desejos que o nosso organismo e que a nossa hereditariedade nos provocam. Quando agimos por nós mesmos, isto é, por Deus em nós, somos colaboradores ou instrumentos vivos da criação; eis porque um ato como esse desfaz "expressões de poder desagregador" o estado de não-criatividade de Adão instituiu sobre a sua espécie. Assim, da mesma forma que o suicídio é a expressão típica do espírito estóico, e a batalha, a do espírito guerreiro, o martírio sempre será a suprema ordenança e perfeição do cristianismo. Essa grande ação foi iniciada para nós, realizada por nossa causa, exemplificada para a nossa imitação e inconcebivelmente comunicada a todos os crentes, por Cristo no Calvário. Lá, a morte atinge os limites do imaginável e talvez vá além; a vítima não é abandonada apenas por todos os apoios naturais, mas também pelo próprio Pai a quem o sacrifício é feito, e não há hesitação na rendição a Deus, apesar de Deus a ter "abandonado".

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

12 de outubro de 2013

ENTREGANDO-SE EM OBEDIÊNCIA

|12 DE OUTUBRO|

MAS quando dizemos que Deus conduz as coisas somente porque são boas, temos de acrescentar que uma das coisas intrinsecamente boa é que as criaturas racionais devem entregar-se livremente em obediência ao seu Criador. O conteúdo de nossa obediência - aquilo que somos ordenados a fazer - será sempre intrinsecamente bom, mesmo no caso (na improvável suposição) de Deus não o ter comandado. Contudo, além do conteúdo, a simples obediência também é intrinsecamente boa, pois, obedecendo, uma criatura racional conscientemente ativa seu papel de criatura, reverte o ato pelo qual todos nós caímos, inverte os passos de Adão e retorna.


[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

11 de outubro de 2013

PALAVRAS DELICADAS

|11 DE OUTUBRO|

É BEM aqui, onde a providência divina parece à primeira vista ser mais cruel que a humildade divina, o rebaixamento do Altíssimo, merece o maior louvor. Ficamos perplexos ao ver a desgraça caindo sobre pessoas dignas, inofensivas e decentes - sobre mães de família capazes e esforçadas, ou pequenos comerciantes diligentes e frugais, sobre aqueles que se empenharam tanto e de forma tão honesta para obter seu modesto estoque de alegrias, e que agora pareciam estar começando a gozá-lo com plenos direitos. Como eu poderia dizer o que precisa ser dito a esse respeito com a máxima delicadeza possível? Não me importo em saber que posso parecer, aos olhos dos meus leitores mais hostis, pessoalmente responsável por todos os sofrimentos que tento explicar - da mesma forma que, até os dias de hoje, todo mundo fala como se Santo Agostinho desejasse que as criancinhas não batizadas fossem para o inferno. Porém, faz uma grande diferença se eu privo qualquer pessoa da verdade. Imploro ao leito que tente acreditar, por um só instante, que Deus, que criou todas essas pessoas tão merecedoras, está coberto de razão em achar que a modesta prosperidade delas e a felicidade de seus filhos não são suficientes para torná-las abençoadas: que tudo isso cairá por terra no fim dos tempos e que, se elas não tiverem aprendido a conhecê-lo, acabarão sendo infelizes. E por isso Deus as atormenta, avisando-as desde já sobre uma influência que um dia terão de descobrir. A vida que vivem para si mesmas e as suas famílias se coloca entre elas e o reconhecimento da sua necessidade; Deus torna esse tipo de vida menos doce para essas pessoas.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

10 de outubro de 2013

ADERINDO ÀS NOSSAS PRÓPRIAS VIDAS

|10 DE OUTUBRO|

SE O PRIMEIRO e mais baixo efeito do sofrimento rompe nossas ilusões de que tudo está bem, o segundo rompe a ilusão de que o temos, seja bom ou mau em si mesmo, é nosso e o suficiente para nós. Todo mundo já percebeu o quanto é difícil voltar os nossos pensamentos para Deus quando tudo está indo bem conosco. É terrível dizer que temos "tudo o que queríamos" se esse "tudo" não inclui Deus. Consideramos Deus uma interrupção. Como diz Santo Agostinho: "Deus quer nos dar algo, mas não pode, porque nossas mãos já estão cheias - não há lugar para ele colocá-lo". Ou, como disse um amigo meu: "Referimo-nos a Deus como um piloto se refere ao paraquedas: ele está lá para um caso de emergência, mas ele espera nunca precisar usá-lo". Deus, que nos criou, sabe o que somos e que a nossa alegria se encontra nele. Entretanto, nós não buscaremos essa alegria nele enquanto houver qualquer outro lugar em que seja plausível buscá-la. Enquanto o que chamamos de "nossa própria vida" nos parecer agradável, não nos entregamos a ele. Assim, o que é que Deus poderia fazer por nós além de tornar a nossa "própria vida" menos agradável e privar-nos da fonte plausível de falsa alegria?

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento] 

9 de outubro de 2013

O MEGAFONE DE DEUS

|9 DE OUTUBRO|

O ESPÍRITO humano não tentará entregar a sua vontade própria enquanto tudo parecer estar em ordem com ela. Agora, tanto o erro quanto o pecado tem essa característica: quanto mais profundos, menos as suas vítimas suspeitarão da sua existência; trata-se de maldades mascaradas. O sofrimento é uma maldade sem máscara, inconfundível; toda pessoa sabe que há algo errado quando está sendo machucada. [...] Contudo, o sofrimento não é só imediatamente reconhecível, mas também um mal impossível de se ignorar. Podemos até nos contentar com nossos pecados e nossa estupidez; qualquer pessoa que já tenha observado glutões engolindo as mais exóticas especiarias, como se não soubessem o que estão comendo, admitirá que é possível ignorar até mesmo o prazer. Porém, o sofrimento insiste em que nos ocupemos dele. Deus sussurra em meio aos nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita por meio do sofrimento. O sofrimento é o megafone de Deus para despertar um mundo surdo.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

8 de outubro de 2013

O EGO REBELDE

|8 DE OUTUBRO|

TODOS nós nos lembramos como essa vontade própria funcionava na infância. Os acessos amargos e prolongados de raiva a cada frustração, a explosão emotiva de lágrimas, o desejo satânico de matar ou morrer em lugar de desistir. Portanto, aqueles tipos mais antigos de governantas ou de pais tinham razão em pensar que o primeiro passo na educação é "esmagar a vontade da criança". Muitas vezes o seus métodos estavam errados; porém, não enxergar a necessidade é, penso eu, o mesmo que privar-se de toda a compreensão das leis espirituais. E se, agora que somos crescidos, já não berramos nem esperneamos, isso se deve, em parte, ao fato de os mais velhos terem dado início ao processo de quebrantamento ou extermínio da nossa vontade própria desde o berçário e, em parte porque essas mesmas paixões passaram agora a assumir formas mais sutis e aprenderam a evitar a morte com várias "recompensas". Daí a necessidade de morrermos diariamente: não importa o quanto pensemos ter quebrado o ego rebelde, ainda o encontraremos vivo.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

7 de outubro de 2013

ENTREGA

|7 DE OUTUBRO|

AGORA, o bem mais apropriado à criatura é a entrega ao seu Criador - permitir de forma intelectual, voluntária e emocional, aquele relacionamento disponível pelo simples fato de ser criatura. Sempre que age assim, o homem fica bem e feliz. Para que não a considerássemos uma tarefa difícil, esse tipo de bondade começa em um nível muito acima das criaturas, pois o próprio Deus, como Filho, por obediência filial, devolve a Deus, o Pai, o ser que o Pai, por amor paternal, eternamente gera no Filho. Esse é o padrão para o qual o homem foi feito para imitar - que o homem paradisíaco realmente imitou. E sempre que a vontade conferida pelo Criador é perfeitamente ofertada de volta, em obediência prazerosa e agradável por parte da criatura, aí, sem dúvida, está o céu, e daí emana o Espírito Santo. No mundo que conhecemos hoje, o problema está em como recuperar essa auto-entrega. Não somos simplesmente criatura imperfeitas que precisam ser aperfeiçoadas: somos, como Newman disse, rebeldes que precisam entregar as suas armas.
Portanto, a primeira resposta à questão por que a nossa cura precisa ser tão dolorosa é que entregar a vontade que passamos tanto tempo reivindicando como sendo nossa já é, em si mesma, não importa onde e como seja realizada, um sentimento mortificante. Eu sempre imaginei que até no Paraíso houvesse uma autossuficiência mínima a ser superada, ainda que essa superação e entrega fossem arrebatadoras. Porém, entregar uma vontade própria inflamada e ferida por anos de usurpação é uma espécie de morte.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

6 de outubro de 2013

A FONTE DO SOFRIMENTO

|6 DE OUTUBRO|

A POSSIBILIDADE do sofrimento é inerente a própria existência de um mundo em que as almas tenham chance de se encontrar. Quando se pervertem, essas almas podem aproveitar essa possibilidade para se machucarem. Isso, quem sabe, seja a explicação para que quase todos os sofrimentos humanos. Foi o homem, e não Deus, que inventou a tortura, os chicotes, as prisões, a escravidão, as amas, as baionetas e as bombas; é devido à covardia ou estupidez humana, e não à crueldade da natureza, que temos a pobreza e a exploração do trabalho. Em todo caso, contudo, resta ainda muito sofrimento que não pode ser atribuído a nós dessa maneira. Mesmo se todo o sofrimento tivesse sido produzido pelo ser humano, iríamos querer saber a razão por que Deus dá permissão para o pior tipo de gente torturar seus companheiros. Supor que... o bem, para as criaturas que somos hoje, signifique, antes de tudo, um bem corretivo ou medicinal, não é uma resposta satisfatória. Nem todo medicamento tem um gosto horrível; ou, se tivesse, esse seria daqueles fatos desagradáveis cuja razão gostaríamos muito de entender.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

5 de outubro de 2013

CONCILIANDO O SOFRIMENTO HUMANO COM UM DEUS AMOROSO

|5 DE OUTUBRO|

O PROBLEMA de conciliar o sofrimento humano com a existência de um Deus amoroso é insolúvel apenas se dermos um sentido trivial à palavra "amor" e colocarmos o homem no centro de tudo. O homem não é o centro. Deus não existe por causa do homem. O homem não existe por si mesmo: "Porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas" [Ap 4.11]. Não fomos feitos, em primeira instância, para amar a Deus (embora tenhamos sido feitos para isso também), e, sim, para que Deus pudesse nos amar e para que pudéssemos nos tornar objetos nos quais o amor divino pudesse encontrar satisfação. Pedir que o amor de Deus se contente conosco assim como somos seria pedir que ele deixasse de ser Deus: porque ele é o que é. A natureza das coisas diz que o seu amor deveria ser impedido e repelido por certas máculas que carregamos nos nosso caráter atual. E como Deus já nos ama, é preciso que ele trabalhe para nos tornar amáveis. Não devemos esperar, nem em nossos melhor momentos, que Deus venha a se reconciliar com nossas mazelas atuais - assim como a mendiga não podia esperar que o rei Cophetua se conformasse com seus trapos e sua sujeira. Ou um cachorro que, por ter aprendido a amar o homem, não podia esperar que ele fosse tão bom a ponto de tolerar que uma criatura selvagem e cheia de vermes entrasse em sua casa. O que nós chamamos de "felicidade" não é o fim principal que Deus tem em vista; mas quando formos pessoas que ele possa amar sem impedimento, devermos ser felizes de fato.

[C. S. Lewis]
- de The Problem of Pain [O Problema do Sofrimento]

4 de outubro de 2013

RISADINHAS NO ESCURO

|4 DE OUTUBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

SERÁ que um mortal poderia fazer perguntas que Deus considera irrespondíveis? Penso que isso seja muito fácil. Todas as questões absurdas são irrespondíveis. Quantas horas têm um quilômetro? Será que o amarelo é quadrado ou redondo? Provavelmente metade das questões que nós fazemos - metade dos nossos grandes problemas teológicos e metafísicos - são desse tipo.
E agora que eu estou pensando sobre o assunto, não há nenhum problema de ordem prática. Eu conheço os dois Grandes Mandamentos e seria melhor que eu os respeitasse. Na verdade, a morte de H. acabou com o problema prático. Quando ela estava viva, eu poderia, na prática, colocá-la acima de Deus; isto é, de fazer a vontade dela, em vez da vontade dele; se tivesse havido um conflito. O que resta não é nenhuma questão sobre o que eu seja capaz de fazer. Tudo gira em torno do peso dos sentimentos e motivações, e coisas desse tipo. Trata-se de um problema que eu coloco a mim mesmo. Não acredito que tenha sido Deus que o tenha posto em minha vida. [...]
De um lado, a união mística. Do outro, a ressurreição de um corpo. E não consigo imaginar um esboço de uma imagem, de uma fórmula ou sequer de um sentimento que os concilie. Contudo, a realidade que podemos compreender, consegue. E mais uma vez a realidade se revela iconoclasta. O reino dos céus resolverá nossos problemas, mas não mostrando-nos formas repentinas de reconciliação entre todas os nossos conceitos aparentemente contraditórios. Todos esses conceitos serão puxados de debaixo dos nossos pés como se puxa um tapete. E então veremos que, na verdade, não havia problema algum.
E volto, mais uma vez, a ter aquela sensação tão difícil de descrever, que só posso comparar ao som de risadinhas no escuro. A sensação de que, na realidade, a resposta está na chocante e desarmada simplicidade.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

3 de outubro de 2013

O GRANDE INCONOCLASTA

|3 DE OUTUBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

NÃO ME importo que todas as fotos de H. sejam horríveis. Não importa (ou pelo menos, não muito) que a memória que eu tenho dela seja imperfeita. As imagens, não importa se estão no papel ou na mente, não tem importância em si mesmas. São simples elos. Compare com algo infinitamente mais elevado. Amanhã de manhã um pastor me oferecerá uma massa de trigo arredondada, fina, fria e sem gosto. É uma desvantagem - não é, de certa forma, vantajoso - que o pão não possua nenhuma semelhança com aquele a quem me une? 
Preciso de Cristo e não de algo que me lembre dele. Quero H. e não algo que seja como ela. Assim, uma boa fotografia pode acabar, no final das contas, tornando-se uma armadilha, um horror, um obstáculo.
As imagens tem o seu uso, do contrário elas não seriam tão populares. (Pouco importa se estamos falando de figuras e estátuas externas à mente ou de construções imaginativas dentro dela). Para mim, entretanto, o seu perigo é mais evidente. As imagens do Sagrado facilmente viram imagens sagradas - sacrossantas. A ideia que tenho de Deus não é divina. Ela tem de ser quebrada de tempos em tempos. Ele mesmo as rompe. Ele é o grande iconoclasta. Será que não poderíamos arriscar em dizer que esse rompimento é uma das marcas distintivas da sua presença? A encarnação é o exemplo supremo. Ela deixa todas as ideias prévias de um Messias em ruínas. E muitos se sentem "ofendidos" diante da iconoclastia; abençoados são aqueles que não se ofendem. Mas o mesmo acontece em nossas orações particulares.
Toda realidade é iconoclasta. A amada terrenal, mesmo nessa vida, sempre triunfa sobre nosso pensamento sobre ela. Você também a quer; com todas as suas resistências, com todas as suas falhas e com todas as suas surpresas. Isto é, em sua realidade franca e independente. E isso, e nenhuma imagem ou memória, é o que temos de amar, mesmo depois da morte dela.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

2 de outubro de 2013

CONTRA A MURMURAÇÃO

|2 DE OUTUBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

A QUE ponto cheguei? Penso que ao mesmo ponto a que qualquer outro viúvo chegaria se parasse, reclinando-se sobre a sua pá, e respondesse à pergunta: "Obrigado. Chega de murmurar. Sinto uma horrível falta dela. Mas dizem que temos de passar por coisas assim para ser provados". Nós chegamos ao mesmo ponto; ele com a sua pá e eu, que não não sou tão bom em cavar, com meu próprio instrumento. É claro que temos de entender o "passar por isso para nos provar" da forma certa. Deus certamente não estava fazendo experiências com a minha fé ou com o meu amor para testar a qualidade deles. Ele já os conhecia muito bem. Eu é que não os conhecia. Nesse tipo de provação Deus nos faz ocupar o banco dos réus, assumir o papel de testemunhas e ser o júri ao mesmo tempo. Ele sempre sobe que o meu castelo era de areia. A única maneira de fazer com que eu me conscientizasse disso era pisoteando-o.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]

1 de outubro de 2013

VISÃO EMBAÇADA

|1 DE OUTUBRO|

Lewis lamenta a morte de sua esposa, Joy

POR QUE ninguém nunca me falou sobre isso? Com que facilidade eu já não devo ter julgado outra pessoa na mesma situação? Posso ter dito "Ele já superou isso; já deve ter esquecido a esposa", quando a verdade é que "ele se lembra mais dela porque já superou parcialmente isso".
Era esse o fato. E acredito que isso faz sentido até mesmo para mim. Você não é capaz de enxergar nada direito enquanto os seus olhos estiverem embaçados com lágrimas. Na maioria dos casos, você não poderá alcançar o que quer se o desejar de forma desesperada demais; de forma alguma você será capaz de extrair o que há de melhor. Dizer "Então, vamos ter uma conversa sobre isso agora mesmo!" reduz qualquer um ao silêncio. Dizer "hoje eu tenho que dormir bem" acaba provocando horas de insônia. Uma sede muito voraz estraga o gosto das mais refinadas bebidas. Será que, de forma semelhante, é a intensidade do desejo que baixa uma cortina de ferro, que nos faz sentir como se estivéssemos de olhos fixos no nada, quando pensamos em nossos mortos? Os que pedem (pelo menos de forma muito inconveniente) não recebem. Talvez eles não possam receber.
E quem sabe, o mesmo aconteça com Deus. Comecei a sentir, gradualmente, como se a porta não estivesse mais fechada e trancada. Será que foi a minha própria necessidade frenética que a bateu na minha cara? Quando se chega a um ponto em que não existe absolutamente nada mais na sua alma, a não ser um grito por ajuda, quem sabe tenha chegado a hora em que Deus já não pode atendê-lo; você é como um homem que está se afogando e que não pode ser ajudado, porque se debate e se agarra violentamente à primeira coisa que encontra pela frente. Talvez os seus próprios gritos repetidos tenham lhe deixado surdo para a voz que esperava ouvir.

[C. S. Lewis]
- de A Grief Observed [A Anatomia de Uma Dor]